1. A doutrina, ainda em construção, tende a conceituar o dano existencial como o dano à realização do projeto de vida em prejuízo à vida de relações. O dano existencial, pois, não se identifica com o dano moral.

 

2. O Direito brasileiro comporta uma visão mais ampla do dano existencial, na perspectiva do art. 186 do Código Civil, segundo o qual “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. A norma em preço, além do dano moral, comporta reparabilidade de qualquer outro dano imaterial causado a outrem, inclusive o dano existencial, que pode ser causado pelo empregador ao empregado, na esfera do Direito do Trabalho, em caso de lesão de direito de que derive prejuízo demonstrado à vida de relações.

3. A sobrejornada habitual e excessiva, exigida pelo empregador, em tese, tipifica dano existencial, desde que em situações extremas em que haja demonstração inequívoca do comprometimento da vida de relação.

4. A condenação ao pagamento de indenização por dano existencial não subsiste, no entanto, se a jornada de labor exigida não era sistematicamente de 15 horas de trabalho diárias, mas, sim, alternada com jornada de seis horas diárias. Robustece tal convicção, no caso, a circunstância de resultar incontroverso que o contrato de trabalho mantido entre as partes perdurou por apenas nove meses. Não se afigura razoável, assim, que nesse curto período a conduta patronal comprometeu, de forma irreparável, a realização de um suposto projeto de vida em prejuízo à vida de relações do empregado.

5. Igualmente não se reconhece dano existencial se não há demonstração de que a jornada de trabalho exigida, de alguma forma, comprometeu irremediavelmente a vida de relações do empregado, aspecto sobremodo importante para tipificar e não banalizar, em casos de jornada excessiva, pois virtualmente pode consultar aos interesses do próprio empregado a dilatação habitual da jornada. Nem sempre é a empresa que exige o trabalho extraordinário. Em situações extremas, há trabalhadores compulsivos, ou seja, viciados em trabalho (workaholic), quer motivados pela alta competitividade, vaidade, ganância, necessidade de sobrevivência, quer motivados por alguma necessidade pessoal de provar algo a alguém ou a si mesmo. Indivíduos assim geralmente não conseguem desvincular-se do trabalho e, muitas vezes por iniciativa própria, deixam de lado filhos, pais, amigos e família em prol do labor. Daí a exigência de o empregado comprovar que o empregador exigiu-lhe labor excessivo e de modo a afetar-lhe a vida de relações.

6. Recurso de revista conhecido e provido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-154-80.2013.5.04.0016, em que é Recorrente WMS SUPERMERCADOS DO BRASIL LTDA. e Recorrida TÂNIA MARIA CARDOSO SILVA. “Inconformado com o acórdão regional, no tocante à indenização por dano moral/existencial, o Reclamado interpõe Recurso de Revista. Foi proferido despacho favorável de admissibilidade. A Reclamante apresentou contrarrazões. Os autos não foram encaminhados à Procuradoria-Geral do Trabalho (art. 83 do RITST).” Eis o relatório aprovado em sessão.

1. CONHECIMENTO

Satisfeitos os pressupostos comuns de admissibilidade, examino os específicos do recurso de revista. 1.1. DANO EXISTENCIAL. PRESSUPOSTOS. SUJEIÇÃO DO EMPREGADO A JORNADA DE TRABALHO EXTENUANTE O Eg. TRT da Quarta Região negou provimento ao recurso ordinário interposto pelo Reclamado. Manteve, assim, a r. sentença que condenou o Reclamado a pagar à Reclamante indenização por dano existencial no valor de R$8.130,00. Eis os fundamentos consignados no v. acórdão regional:

“A ocorrência de ofensa efetiva aos direitos da personalidade, a justificar a condenação ao pagamento de indenização por danos morais é presumível diante da  excessiva jornada a que o Reclamante foi submetido. Veja-se que se concluiu, em tópico anterior, pelo acerto da jornada de trabalho arbitrada na decisão de primeiro grau, qual seja, 15 horas de labor em um dia e 6 horas no dia seguinte (nos dias em que realizava 15 horas diárias, sua jornada iniciava as 6h e terminava as 21 h; nas ocasiões em que realizava 6 horas diárias, esta iniciava às 12h e terminava as 18h), com apenas duas folgas ao mês. Como se vê, era habitual o trabalho do autor em jornadas de trabalho de 15 horas (dia sim, dia não), excedendo em 7 horas a jornada legal de 8 horas. Também lhe era sonegado o direito ao repouso semanal remunerado em duas semanas por mês, pelo menos. 

A exigência de jornada excessiva, inclusive em dias destinados ao repouso semanal e em feriados, fere a dignidade do empregado, tolhendo o seu direito ao descanso, invadindo sua privacidade, prejudicando o seu lazer e o seu convívio familiar. O prejuízo é evidente, face à natureza do dano, sendo a responsabilidade decorrente do simples fato da violação, ou seja, o dano moral é in re ipsa, evidenciando-se pela simples verificação da ofensa ao bem jurídico do empregado. [...]  Quanto ao valor, é de se observar que a indenização por dano moral tem finalidades de cunho punitivo e pedagógico, cabendo ainda considerar as condições do ofensor. Além disso, em se tratando de dano moral decorrente da sujeição a jornadas excessivas deve-se levar em conta o tempo de duração do contrato e, consequentemente, do período a que submetido o empregado à conduta tida como causadora do dano. No caso, sopesados tais critérios, considera-se adequado o valor de R$ 8.130,00, principalmente em razão do período do contrato de trabalho (01.08.2011 a 03.04.2012), equivalente a dez remunerações da autora.” (fls. 445/448-e) Irresignada, a Reclamada interpõe recurso de revista, alegando que a prestação de horas extraordinárias gera tão somente o direito ao pagamento correspondente, não caracterizando dano moral ou existencial. Transcreve aresto para comprovação de divergência jurisprudencial.

Sucessivamente, pretende o Reclamado a redução do valor da indenização, por considerá-lo excessivo. Aponta violação dos arts. 5º, inciso V, da Constituição Federal e 944 do Código Civil. Discute-se, no presente recurso de revista, eventual responsabilidade civil do empregador, por dano existencial, na hipótese em que o empregado sujeitou-se a uma jornada extenuante, de 15 (quinze) horas de trabalho em um dia e 6 (seis) horas no dia seguinte, no período compreendido entre agosto de 2011 e abril de 2012.

O recurso de revista comporta conhecimento no tocante ao tema “dano existencial”. O precedente colacionado à fl. 455 da numeração eletrônica, oriundo do Eg. TRT da Vigésima Terceira Região, parte das mesmas premissas fáticas examinadas pelo TRT de origem, ou seja, da prestação de horas extras, que, de per si, privam o empregado de realizar outras atividades. Adota, todavia, teses diametralmente opostas ao sustentar que:

1) o descumprimento da legislação trabalhista no tocante às horas extras enseja tão somente os efeitos pecuniários correspondentes; e 

2) o dano existencial não se revela in re ipsa, dependendo de comprovação do prejuízo suportado. Assim, considero atendidas as exigências consagradas na Súmula nº 296, I, do TST, porquanto presentes a identidade de premissas fáticas e a adoção de teses diametralmente opostas na interpretação das mesmas normas. Ante a demonstração de divergência jurisprudencial, conheço do recurso de revista.

2. MÉRITO DO RECURSO DE REVISTA

Sabe-se que o denominado “dano existencial”, originário da Itália, é instituto cujos lineamentos e natureza jurídica ainda estão em franca elaboração doutrinária. Muitas questões ainda estão em aberto, como a viabilidade de cumulação com o dano moral, ou se, na verdade, cuidar-se-ia de uma subcategoria de dano moral, de tal sorte que este abrangeria o dano existencial. A doutrina, ainda em construção, conceitua o dano existencial como o dano à realização do projeto de vida em prejuízo à vida de relações. Como assinala a Profª. MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “seria o prejuízo à vida social, à vida cotidiana social da pessoa”.

Conforme assinala o Prof. EUGÊNIO FACCHINI NETO, “sempre teria de haver consequências externas na vida da vítima, em razão da alteração para pior dos seus atos de vida e da forma de se relacionar com os outros, prejudicando sua realização pessoal e comprometendo a capacidade de gozar plenamente a vida”. Esse componente externo e a exigência de a vítima demonstrá-lo é que diferenciariam o dano existencial do próprio dano moral, eminentemente subjetivo, “dano meramente emotivo, interiorizado” (ENAMAT — Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho. Congresso: Perfil Contemporâneo da Responsabilidade Civil, 10 e 11 de novembro de 2014). Igualmente não se confunde o dano existencial com o dano biológico, subespécie de dano moral caracterizada pela lesão à integridade psicofísica da pessoa. Recorda FACCHINI NETO um caso famoso de dano existencial julgado em 2003 pela Corte de Cassação italiana: em virtude de erro médico, uma criança nasceu descerebrada, com problemas orgânicos mais intensos e condenada a viver de forma vegetativa, sem nenhuma hipótese de relacionamento; daí que a rotina da família foi gravemente afetada em razão de lesões seriíssimas causadas ao filho. Que a criança tinha todos os direitos... Que a criança sofreu vários danos, não se questiona; que os pais sofreram danos morais, dor, sofrimento, angústia, frustração, também não se discute. Mas, nesse caso, concederam-se também danos existenciais dizendo: “a dor é transitória, a dor vai passar, por mais profunda que seja. (...). Mas enquanto seu filho permanecer vivo, a sua rotina vai mudar e de forma drástica, porque alguém vai ter de ficar cuidando desse filho para o resto da vida”. 

Lembra, porém, FACCHINI NETO que na Itália, em 2009, a Corte de Cassação impôs uma limitação severa ao reconhecimento do dano existencial:  “Dano existencial não é um dano autônomo. Dano existencial pode ter uma importância descritiva, mas dano existencial só pode ser indenizado quando a situação fere um direito fundamental da pessoa, ou seja, uma leitura constitucionalizada do Código Civil.” Penso que o Direito brasileiro comporta uma visão mais ampla do dano existencial, na perspectiva do art. 186 do Código Civil, segundo o qual “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Parece-me que a norma em apreço, além do dano moral, comporta reparabilidade de qualquer outro dano imaterial causado a outrem, inclusive pelo empregador ao empregado, em face de lesão de direito de que derive prejuízo demonstrado.

Põe-se, então, a indagação: a sobrejornada habitual e excessiva, exigida pelo empregador, por si só, tipifica dano existencial? Em tese, sim, mas em situações extremas em que haja demonstração inequívoca do comprometimento da vida de relação. Não é, todavia, o que sucede no caso em apreço. Primeiro, a jornada de labor exigida não era sistematicamente de 15 horas de labor. Como visto, era alternada com jornada de seis horas diárias. Segundo, é incontroverso nos autos que o contrato de trabalho mantido entre as partes durou apenas nove meses. Não se me afigura razoável que nesse curto período possa a Reclamante comprometer de forma irreparável a realização de um suposto projeto de vida em prejuízo à vida de relações.

Terceiro, porque não há no acórdão regional referência alguma à demonstração de que a jornada de trabalho exigida, no caso, de alguma forma comprometeu de forma grave e irremediável a vida de relação do empregado. Esse último aspecto afigura-se-me sobremodo importante para tipificar e não banalizar, em casos de jornada excessiva, o dano existencial, pois virtualmente pode consultar aos interesses do próprio empregado a dilatação habitual da jornada. Ressalto, ainda, que nem sempre é a empresa que exige o trabalho extraordinário. Há trabalhadores compulsivos, ou seja, viciados em trabalho (workaholic), quer motivados pela alta competitividade, vaidade, ganância, necessidade de sobrevivência, quer motivados por alguma necessidade pessoal de provar algo a alguém ou a si mesmo.

Um indivíduo assim, geralmente, não consegue se desligar do trabalho e muitas vezes, por iniciativa própria, deixa de lado filhos, pais, amigos e família por  iniciativa própria. A atual, notória e iterativa jurisprudência do TST, em situações análogas, tem decidido que, sem a constatação de nenhuma circunstância especial ou agravante que tivesse acompanhado o descumprimento das obrigações contratuais pela empregadora, não há como se reconhecer o direito à indenização por dano imaterial, conforme demonstram os seguintes precedentes:

“RECURSO DE REVISTA – DANO MORAL – EXCESSO DE JORNADA

A exigência de trabalho extraordinário, por si só, não demonstra a ocorrência de conduta ilícita a justificar a condenação ao pagamento de indenização por danos morais. Recurso de Revista conhecido e provido.” (TST, Oitava Turma, Processo nº RR-105-14.2011.5.04.0241, DEJT de 9/5/2014)

"RECURSO DE REVISTA. [...] INDENIZAÇÃO POR

DANO MORAL

[...] A jurisprudência que se consolida nesta Corte é no sentido de considerar que a mera presunção de que o atraso no pagamento dos salários gera prejuízo ao patrimônio imaterial do trabalhador não justifica a condenação do empregador ao pagamento de indenização por danos morais, devendo haver prova inconteste naquele sentido, o que não ocorreu na hipótese. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. Prejudicada a análise do tema dano moral - valor da indenização. [...]" (RR-89000-56.2007.5.09.0562, Relator Ministro: Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, DEJT de 4/10/2013)

"II - RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA

RECLAMANTE. [...] DANO MORAL. INDENIZAÇÃO.

Esta Corte Superior tem decidido reiteradamente que atrasos no pagamento de salários e de verbas rescisórias não conferem ao empregado, por si só, direito a indenização por dano moral. Tem-se entendido que o inadimplemento das obrigações contratuais por parte do empregador resolve-se na esfera material e que a condenação ao pagamento de indenização por dano moral depende da demonstração de que os atrasos causaram transtornos efetivos e graves à vida do trabalhador. Com relação a esse requisito, não está registrado no acórdão regional nenhum fato que permita concluir pela ocorrência de desdobramentos extraordinários e prejudiciais à Reclamante. Para comprovar as alegações da Autora, é necessário reexaminar fatos e provas, procedimento não permitido em recurso de revista, por força da Súmula nº 126 desta Corte. Assim, ausente a prova das consequências concretas que o inadimplemento da empregadora teria causado à Reclamante, há de ser confirmada a improcedência do pedido de indenização por dano moral. Recurso de revista de que se conhece, ante a demonstração de divergência jurisprudencial, e a que se nega provimento, no mérito." (ARR-91400-40.2008.5.01.0074, Relator Ministro: Fernando Eizo Ono, 4ª Turma, DEJT 20/9/2013)

"[...] INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.

DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS.

Do modo como foi prequestionada a matéria no acórdão recorrido, sem a exposição das premissas fáticas específicas inerentes à controvérsia, e sem o registro de nenhuma circunstância especial ou agravante que tivesse acompanhado o descumprimento das obrigações contratuais pela empregadora, não há como se  reconhecer o direito à indenização por danos morais . Recurso de revista de que não se conhece." (RR-69200-41.2009.5.18.0006, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, DEJT de 26/4/2013) 

"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA.

1. DANOS MORAIS. CARACTERIZAÇÃO DO DANO.

O Regional concluiu que o descumprimento de algumas obrigações trabalhistas, por si só, não gera dano moral, razão pela qual indeferiu o pagamento da indenização respectiva. Nesse contexto, a pretensão de reforma recursal, baseada na premissa fática de que as privações financeiras decorrentes dos atrasos salariais e de verbas rescisórias, bem como da retenção das guias necessárias ao saque do seguro-desemprego e FGTS geram dano moral, demandaria o reexame do quadro fático, procedimento vedado a esta Corte, nos termos da Súmula nº 126 do TST. Pertinência da Súmula nº 296, I, do TST. [...]" (AIRR-230200-33.2009.5.15.0071, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, DJET de 14/12/2012) A meu juízo, não se encontram presentes os requisitos necessários à responsabilidade civil do empregador, mais precisamente os elementos caracterizadores do dano existencial.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso de revista do Reclamado para excluir da condenação o pagamento da indenização por dano existencial. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por maioria, vencida a Exma. Ministra Maria de Assis Calsing, relatora, conhecer do recurso de revista por divergência jurisprudencial e, no mérito, dar-lhe provimento para excluir da condenação o pagamento da indenização por dano existencial.

Brasília, 04 de março de 2015.

Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)

                                                                                       JOÃO ORESTE DALAZEN

                                                                   Ministro Presidente da 4ª Turma, Redator Designado