Primeira Parte de artigo de Jorge Luiz Souto Maior, Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e Juiz do Trabalho em São Paulo
PL 4.330, o Shopping Center Fabril: Dogville mostra a sua cara e as possibilidades de redenção
 
(PARTE 1 DE 3)
 
Jorge Luiz Souto Maior
 
(Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho)
 
Diante das manifestações de junho, sobretudo em razão da rapidez e da espontaneidade como se produziram, representantes do governo federal vieram a público para dizer que não estavam entendendo o que estava acontecendo. Depois, assumiram que era preciso “ouvir a voz das ruas”.
 
No entanto, passado o momento mais agudo das manifestações, menos de dois meses depois, esse mesmo governo está patrocinando, abertamente, com apoio de parte da classe empresarial brasileira, a aprovação de um projeto de lei que amplia as possibilidades de terceirização.
 
Isso demonstra, de maneira clara, que o governo continua não entendendo o que está acontecendo e que, ao contrário do que manifestou, permanece não escutando a voz das ruas. Por acaso, alguém viu, nas manifestações de junho, alguém ir às ruas pedir “mais terceirização”, “mais precarização no trabalho”, “mais segregação” ou “rebaixamento de salários”? A classe empresarial, ademais, não precisou ir às ruas. Utilizou-se do mecanismo tradicional da via dos bastidores para conduzir suas pretensões junto ao governo.
 
Cumpre trazer tudo isso à tona, para dar continuidade ao processo de esclarecimento da sociedade brasileira.
 
De fato, seguindo a linha da trama do filme de Lars von Trier, o PL 4.330 equivale ao momento no qual as pessoas e as estruturas de poder da pequena cidade de Dogville demonstram o que de fato são, deixando cair as máscaras e os disfarces. O problema é que isso só fica claro para quem assiste ao filme. Os protagonistas estão tão inseridos na lógica da perversidade da exploração sem limites de uma pessoa vulnerável que as situações são por eles tratadas como normais, apoiando-se ainda na justificativa de que a submissão se faz necessária como forma de “ajudar” o explorado.
 
Da mesma forma, os protagonistas do PL 4.330 tentam vender a ideia de que estão fazendo um bem para os trabalhadores, apresentando a medida, inclusive, como necessária para ajudá-los, conforme relevado na exposição de motivos do projeto:
 
"O mundo assistiu, nos últimos 20 anos, a uma verdadeira revolução na organização da produção. Como conseqüência, observamos também profundas reformulações na organização do trabalho. Novas formas de contratação foram adotadas para atender à nova empresa.Nesse contexto, a terceirização é uma das técnicas de administração do trabalho que têm maior crescimento, tendo em vista a necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço.No Brasil, a legislação foi verdadeiramente atropelada pela realidade. Ao tentar, de maneira míope, proteger os trabalhadores simplesmente ignorando a terceirização, conseguiu apenas deixar mais vulneráveis os brasileiros que trabalham sob essa modalidade de contratação". – grifou-se.
 
Trata-se, no entanto, de argumentos carregados de perversidade, sobretudo quando tentam justificar e minimizar todas as maldades já cometidas pela terceirização, ao mesmo tempo em que consideram o aprofundamento da maldade como algo bom para as vítimas. Não significa nem mesmo de uma banalização do mal. Representa, isto sim, a convicção em torno da legitimidade da perversidade, configurando-se, no sentido do disfarce, uma afronta à inteligência humana.
 
De fato, a terceirização ao longo de 20 (vinte) anos em que se instituiu no cenário das relações de trabalho no Brasil, desde quando foi incentivada pela Súmula 331, do TST, em 1993, serviu para o aumento vertiginoso da precarização das condições de trabalho. É impossível ir à Justiça do Trabalho e não se deparar, nas milhares audiências que ocorrem a cada dia, com ações nas quais trabalhadores terceirizados buscam direitos de verbas rescisórias, que deixaram de ser pagas por empresas terceirizadas, que sumiram.
 
Esses trabalhadores, além disso, que já passaram, durante o vínculo de emprego, por um processo de segregação, de discriminação, de fragilização, quando não de invisibilidade, ainda se veem obrigados a suportar anos de lide processual para receber parte de seus direitos.
 
E o projeto vem preconizar que terceirização “é técnica moderna de administração do trabalho”! Mas, de fato, representa uma estratégia de destruição da classe trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento da exploração do trabalhador, que se vê reduzido à condição de coisa invisível, com relação à qual, segundo a trama engendrada, toda perversidade está perdoada. E, repita-se, essa perversidade vem sendo cometida, concretamente, ao longo de 20 (vinte) anos.
 
O próprio projeto se trai e revela, na incoerência, a sua verdadeira intenção. Diz que a terceirização advém da “necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal” – grifou-se. Ocorre que o objetivo principal do projeto é ampliar as possibilidades de terceirização para qualquer tipo de serviço. Assim, a tal empresa moderna, nos termos do projeto, caso aprovado, poderá ter apenas trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual seria, então, o “negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação direta essa empresa moderna possuiria com o seu “produto”?
 
E se concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades, gerando o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode, de fato, melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço, então a empresa contratante não possui uma relevância específica. Não possui nada a oferecer em termos produtivos ou de execução de serviços, não sendo nada além que uma instituição cujo objeto é administrar os diversos tipos de exploração do trabalho. Ou seja, a grande empresa moderna, nos termos do projeto, é meramente um ente de gestão voltado a organizar as formas de exploração do trabalho, buscando fazer com que cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”, que pretende rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui, ademais, apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho subordinado pela necessidade e falta de alternativa.
 
A terceirização, ainda, visa a dificultar que se atinja a necessária responsabilidade social do capital. Nesse modelo de produção, a grande empresa não contrata empregados, contrata contratantes e estes, uma vez contratados, ou contratam trabalhadores dentro de uma perspectiva temporária, não permitindo sequer a formação de um vínculo jurídico que possa ter alguma evolução, ou contratam outros contratantes, instaurando-se uma rede de subcontratações que provoca, na essência, uma desvinculação física e jurídica entre o capital e o trabalho, tornando mais difícil a efetivação dos direitos trabalhistas, pois o empregador aparente, aquele que se apresenta de forma imediata na relação com o trabalho, é, quase sempre, desprovido de capacidade econômica ou, ao menos, possui um capital bastante reduzido se comparado com aquele da empresa que o contratou. Vale lembrar que o capital envolvido no processo produtivo mundial é controlado, efetivamente, por pouquíssimas corporações, que com a lógica da terceirização buscam se desvincular do trabalho para não se verem diretamente ligadas às obrigações sociais, embora digam estar preocupadas com ações que possam “salvar o mundo”!
 
Em várias situações o próprio sócio-empresário da empresa contratada, dependendo do alcance da rede de subcontratações, não é mais que um empresário aparente, um pseudo capitalista. Ele não possui de fato capital e sua atividade empresarial é restrita a dirigir a atividade de trabalhadores em benefício do interesse produtivo de outra empresa. Na divisão de classes, suplantando as aparências, situa-se no lado do trabalho. São, de fato, empregados daquela empresa para a qual prestam serviços, mesmo que seu serviço se restrinja ao de administrar o serviço alheio.
 
É interessante perceber que essa situação da precarização do capital, como efeito da terceirização e principalmente das subcontratações em rede, foi visualizada pelos autores do projeto de lei em comento, tanto que tiveram o “cuidado”, na perspectiva do interesse do grande capital, de prever que não se forma vínculo de emprego entre o sócio da empresa terceirizada e a empresa contratante, embora tenham tentado, é verdade, minimizar os problemas daí decorrentes com a exigência de um capital mínimo para a constituição da empresa terceirizada, o que, no entanto, como se verá adiante, não constitui garantia eficiente ao trabalhador e não anula o problema maior do afastamento entre o capital e a responsabilidade social.
 
No projeto apresentado pelo governo, como explicitado abaixo, há também preocupação a respeito, aumentando os requisitos financeiros para a constituição da empresa de terceirização, mas que, da mesma forma, não evita todos os efeitos perversos já manifestados.
 
A revelação mais importante que se extrai do projeto é a de que o negócio principal de uma empresa é a extração de lucro por intermédio da exploração do trabalho alheio e quanto mais as formas de exploração favorecerem ao aumento do lucro melhor, sendo que este aumento se concretiza, mais facilmente, com redução de salários, precariedade das condições de trabalho, fragilização do trabalhador, destruição das possibilidades de resistência e criação de obstáculos para a organização coletiva dos trabalhadores, buscando, ainda, evitar qualquer tipo de consciência em torno da exploração que pudesse conduzir a práticas ligadas ao antagonismo de classe.
 
Eis, concretamente, o que significa a terceirização e, por óbvio, os segmentos irresponsáveis da classe empresarial, sobretudo ligados ao investimento estrangeiro, que pouco se importam com a vida dos brasileiros, querem que esse modelo se aprofunde ainda mais. Para estes, quanto mais perversidade melhor, embora queiram enganar a si e a todos, tentando fazer crer que praticam o bem...
 
O engodo fica mais evidenciado na percepção da contradição de um sistema econômico que tenta vender a ideia de preocupação com o social, desenvolvendo estratégias de gestão de pessoal voltadas ao que denominam de “humanização” das relações de trabalho, mas que, ao mesmo tempo, preconiza que só pode se sustentar por intermédio de um modo de produção no qual o capital se desvincule do trabalho e, consequentemente, do trabalhador, para que não tenha que se preocupar com os dilemas pessoais deste. Do embaralhado de contratos entre empresas, o que se pretende é que o serviço seja feito, não importando por quem ou o meio que a empresa terceirizada utilize para que o serviço esteja pronto, na forma, na quantidade, na qualidade e no prazo contratados. E se o grande capital possui e exerce esse poder sobre a empresa contratada, esta, concorrendo com outras para pegar uma parcela do capital, tende a se relacionar da mesma forma com outras empresas que venha a contratar e, mais ainda, com os seus trabalhadores subordinados.
 
É assim, pois, que se revela toda a falácia das estratégias de gestão – que o Judiciário insiste em trazer para as suas esferas administrativas –, que representam, de fato, fórmulas dissimuladas de fazer com que o trabalhador produza mais e melhor, na perspectiva do interesse exclusivo do capital, sob a aparência de uma preocupação humana, mas que escamoteia a constante ameaça do desemprego por inaptidão, em razão de reestruturação administrativa ou devido a uma crise, que é um fantasma constante.
 
As estratégias de gestão de pessoal assumem ainda o papel de mascarar a loucura do trabalho, fruto dos desajustes de um sistema que difunde valores que não consegue garantir: igualdade, liberdade e satisfação pelo consumo. Transforma todo desajuste em problemas oriundos das relações pessoais, fazendo com que o trabalhador acredite que o seu obstáculo é o outro trabalhador, preconizando comportamentos padrões, que devem ser seguidos e reforçados na identificação de uma tal “laranja podre”.
 
A corporação, que desenvolve internamente essa lógica, apresenta-se aos trabalhadores como o ente eticamente perfeito, que se insere em um sistema sem falhas. Os problemas são deslocados para os homens, cabendo-lhes um esforço de adaptação à padronização que interessa à corporação, o que é acompanhado da identificação e da punição dos desajustados. Enquanto isso as corporações jogam o jogo do capitalismo, suprimindo a concorrência, sonegando impostos, fazendo propaganda enganosa de seus produtos, destruindo o meio-ambiente...