Pensar os conflitos apresentados à Justiça do Trabalho desafia refletir sobre a efetiva desigualdade dessa relação contratual, com raras exceções de efetivo bem estar e retributividade adequada.

Pensar os conflitos apresentados à Justiça do Trabalho desafia refletir sobre a efetiva desigualdade dessa relação contratual, com raras exceções de efetivo bem estar e retributividade adequada.

Surpreendi-me ao receber de um nobre professor de direito civil um artigo publicado em um importante jornal, de autoria de Calvet1, em aparente desconhecimento da prática das ações e audiências cíveis, sendo a litigiosidade marcante e a conciliação exceção. Até parece que a Justiça do Trabalho não é a do ramo do Poder Judiciário que mais incentiva e realiza acordo, em aplicação do parágrafo primeiro do artigo 764, da CLT.

O olhar pela advocacia permite compreender que por meio dos acordos trabalhistas não poucas vezes ocorrem renúncias de direitos, seja por necessidade financeira ou por incerteza da demanda pelo trabalhador, contribuindo para a renúncia de direitos a carência de prova, já que o autor tem considerável dificuldade de convencer colegas ou ex-colegas de trabalho a deporem em Juízo, o que não acontece com o reclamado. Quem minimamente advoga conhece a realidade do cotidiano.

O referido artigo apresenta um argumento não pouco preocupante com referência aos honorários advocatícios contratuais, no importe de 30% sobre a vantagem econômica auferida ao cliente reclamante, ou honorários contratuais dos advogados das empresas - parece que há uma resistência à cobrança dos honorários. Não bastasse isso, o artigo apresenta o incômodo com o número de advogados ao assim registrar: "são cifras que impressionam, mas também é importante lembrar que, atualmente, no Brasil, há cerca de 1.220.000 advogados, algo como 1 advogado para cada 175 habitantes no país...".2

No que se refere aos honorários advocatícios, o advogado, ao patrocinar a demanda, trabalha portando a voz de quem lhe constituiu para efetivar a cidadania e a democracia, disponibiliza o seu conhecimento técnico e científico, assume o custo de toda estrutura do seu escritório, arcando não poucas vezes com as despesas da demanda sem ter a retributividade pela frustração da execução. Resta evidente o desconhecimento do cotidiano de um escritório de advocacia e materializado um aparente desgosto provocado pela possível prosperidade alheia das grandes bancas de advocacia empresarial ou de exitosos advogados de reclamantes. Assumir o risco da atividade liberal ou arcar com os custos de um grande escritório, sem a garantia do subsídio do Estado, é um predicado. 

Quanto ao número de advogados no Brasil, a tese de doutorado de ALMEIDA JÚNIOR3 a respeito da expansão do ensino de Direito aponta pela democratização a serviço da prática da justiça no Brasil, sinalizando que a proliferação de profissionais do Direito certamente influenciará positivamente na reivindicação de direitos sociais dos excluídos, com melhora na prática da justiça, já que a história materializa que o Estado e os profissionais do Direito nunca estiveram efetivamente preocupados com a pobreza, com os excluídos, com a grande massa da população, por estarem afeitos ao legalismo elitista, que nunca esteve voltado à realidade do País. Ou seja, no mínimo, o elevado número de advogados possibilita que o cidadão pobre possa ter menor grau de dificuldade para acionar o Poder Judiciário.

Calvet, acerca dos direitos trabalhistas e dos litígios, faz a seguinte crítica:

[...] Quais conclusões podemos tirar desses dados? Simples:  Ao lado da narrativa da efetivação de direitos sociais existe o interesse de todos os atores envolvidos em manterem seus próprios ganhos, diretos ou indiretos. Interesse legítimo, frise-se, pois cada um está apenas exercendo seu papel e sobrevivendo dignamente.4

Reflito no sentido de que a maioria das ações trabalhistas não tem como objeto a "manutenção desses mercados", como escrito, mas porta a reivindicação de direitos que o autor da ação entende violados. Se a autotutela é vedada como regra e a sociedade instituiu a função judiciária para julgar os conflitos de interesse e, se da relação jurídica de emprego surgiu o conflito, nada mais natural que o exercício do direito público subjetivo de invocar a tutela jurisdicional. Evidentemente a sociedade ideal seria aquela na qual não ocorressem conflitos sociais e todos os direitos fossem observados, a dispensar a atuação ou existência do Poder Judiciário, porém essa não é a realidade. Aliás, ideal seria a sociedade que Thomas More descreve em A Utopia, mas, se as relações materiais e espirituais de vida não alcançam o ideal e a ausência de evolução social gera os conflitos, não é lógico e nem razoável atribuir a culpa à classe trabalhadora, que vive para o trabalho, e ainda necessita do Estado judiciário.

A elucubração possível é a de que, na sociedade capitalista, que criou a forma jurídica e o Estado, o mercado é quem sustenta os Poderes e o trabalho é quem sustenta o mercado, porque a mercadoria não existe por si, mas surge através do trabalho gerido pelos detentores dos meios de produção. Existe, ideologicamente, uma resistência ao reconhecimento da legitimidade da reivindicação da classe trabalhadora, principalmente em um País onde o sistema normativo e o Estado, até um passado próximo, precisamente 1888, legitimavam o trabalho forçado, sem remuneração, escravizando o ser humano. Somos herdeiros da sociedade escravista e os reflexos negativos nos assombram ainda nos dias atuais.

Retroagir na história revela que a resistência da sociedade burguesa à feudal, com as ideias e as práticas que impulsionaram a sociedade moderna, moldaram a sociedade contemporânea, constituindo um sistema de Estado organizado pelos ideais burgueses, com funções para a classe que se formou, através das funções Legislativa, Executiva e Judiciária, que garantem a liberdade e igualdade formais (BARROS, 2015).

Calvet, em seu artigo, disserta:

Parece que teremos que mudar muito se quisermos uma nova lógica para a área trabalhista, uma que não produza mais um custo para as empresas, que de fato acaba sustentando não apenas os trabalhadores através da justa contraprestação, mas também todos os profissionais ligados à indústria do litígio.5

Aparentemente, há mais uma preocupação com os custos e lucros das empresas do que com o equilíbrio das relações sociais e efetivação dos princípios constitucionais, em prol da justiça social, e faço questão de expor que considero ser de suma importância os lucros das empresas.

Já foi possível grafar que não restam dúvidas de que a sociedade burguesa formou-se e atuou em oposição à sociedade feudal, constituindo o Estado e o Direito, cabendo a este a função, dentre outras, de controle dos poderes dos ocupantes do Estado. Essas criações se constituiriam como instrumentos de emancipação da burguesia e, por outro lado, como ferramenta de controle e manutenção da classe proletária. Ao longo da história, a burguesia desempenhou papel altamente revolucionário, e, na atualidade, o Estado burguês, por meio das Instituições estabelecidas, mantém a ordem e resiste a oposições de mudança, permitindo apenas pequenas alterações pelo sistema instituído.

A observação da história indica que os estágios de transformações da sociedade, com o desenvolvimento da sociedade burguesa que se formava, motivaram o avanço político. O desenvolvimento da sociedade, centralizando as forças produtivas nas mãos da sociedade burguesa, cria, em contrapartida, a dependência da classe trabalhadora desprovida da propriedade. A evolução das indústrias não corresponde à evolução da classe trabalhadora. Esta não se emancipa e o enriquecimento da classe burguesa não corresponde ao enriquecimento da classe trabalhadora, pelo menos na mesma proporção. A concentração do capital e o trabalho assalariado são os instrumentos de manutenção da classe burguesa (BARROS, 2015)6.

Seria bom se fosse simples a compreensão da função do Direito do Trabalho, mas pensar esse ramo do direito cientificamente motiva o exercício de tentativa de compreensão do direito e a sua função na sociedade, o que faz ser imprescindível passar pelo exercício de compreensão das contradições sociais e do porquê as leis e as aplicações feitas através do Judiciário contrariam interesses imediatos da burguesia, se a própria estrutura de Estado e a lei advêm de uma organização de classe - organização esta que  atende a classe burguesa, que de forma indireta, exerce o Estado.

A relação de trabalho é complexa e contraditória, mas tem a estrutura do Estado e o Direito do Trabalho como sistema amortecedor e controlador das oscilações existentes entre a classe trabalhadora e a tomadora do trabalho, cujo objetivo maior é manter a classe trabalhadora - as forças produtivas - a serviço da classe tomadora burguesa - das relações de produção. A atuação é de sustentação do contato contínuo entre as suas classes e de aparentar o menos possível as contradições existentes. A organização que se constitui não se ocupa com o homem trabalhador, mas com a manutenção de um modo de produção que atenda determinada classe social. A construção do conhecimento jurídico não pode ignorar, portanto, essa compreensão, independentemente da posição sobre as relações de produção do sujeito que a conhece. A ignorância é uma aliada da manutenção do status quo, e o mínimo que se espera é a tomada de posição consciente (BARROS, 2015).

Justiça seja feita: é realmente preocupante o surgimento de uma nova forma de empresariado que fatura com a compra de crédito trabalhista, o que significa que o trabalhador, como regra hipossuficiente, está mais fragilizado e que a Justiça do Trabalho não outorga efetividade nas execuções trabalhistas, negando eficácia à jurisdição. O que não é normal é empresa ganhar dinheiro comprando créditos trabalhistas e ter sucesso na execução: se isso acontece, provavelmente sua causa está na miséria do trabalhador brasileiro e na ineficiência do Poder Judiciário.

Tento compreender a indignação do autor do artigo, no que se refere à nova indústria de compra de crédito trabalhista, contudo é importante levar em consideração o fato de que não é regra o apontado pelo autor do artigo em relação  à venda de créditos, e a boa ciência exige que levemos em conta a análise minuciosa dos fatos. Devo fazer três ponderações: I) no Brasil, existe uma cultura de rejeição à advocacia, de forma direta ou indireta, o que é muito negativo para efetivação do Estado Democrático de Direito e equilíbrio de forças; II) existe um olhar muito negativo, de forma declarada ou velada, à classe trabalhadora, como se ela fosse a culpada pela ausência de riqueza alheia e como se não fosse ela que produzisse a riqueza do mundo; III) o Poder Judiciário trabalhista é o amortecedor que mais mantém a desigualdade social do que atua a emancipar a classe trabalhadora, conforme assim já registrado (BARROS, 2015).

Julgo ser relevante enfatizar que o Direito do Trabalho é um direito possível cujo objetivo é o de se renovar para manter o capital, porque, se não atender aos clamores da classe trabalhadora, a consequência pode ser a eliminação da forma de sociedade capitalista, com a destruição do próprio capital. A manutenção do trabalhador corresponde à manutenção do capital. O processo que se revela é de uma relação com um sistema jurídico contemporâneo, no qual "a coisa não é preto e branco", é "ou preto ou branco", é um sistema de concessões do capital para a sua própria preservação. Mesmo sendo o Direito do Trabalho um direito burguês, que concede os anéis para não se perder os dedos (BARROS, 2015).

Pensar os conflitos apresentados à Justiça do Trabalho desafia refletir sobre a efetiva desigualdade dessa relação contratual, com raras exceções de efetivo bem estar e retributividade adequada, bem como sobre a importância de efetivar a justiça social, para o equilíbrio das relações. Se o credor trabalhista está vendendo o seu crédito, análise social chama a atenção para alguns fatos muito preocupantes: a) o Poder Judiciário não está dando conta da efetividade de suas decisões, de forma a motivar que o trabalhador venda o seu crédito; b) carecemos de boa condição material e espiritual de vida da classe trabalhadora; c) a comunidade jurídica deve cobrar o desenvolvimento de mecanismos para que a Justiça do Trabalho cumpra o seu papel; d) a advocacia trabalhista é essencial para portar a voz dos que necessitam dialogar com o Estado-judiciário e a retributividade dos serviços do advogado através dos honorários é indeclinável.

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Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/347233/trabalhador-e-advogado-trabalhista-no-brasil-colonia?s=FB

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1 Calvet, Otávio Torres. "Trabalho Contemporâneo. Venda de créditos trabalhistas: o bilionário mercado da Justiça do Trabalho. In: https://www.conjur.com.br/2021-jun-08/trabalho-contemporaneo-venda-creditos-bilionario-mercado-justica-trabalho (s./p.). Acesso em 15/06/2021.

2 Ibidem (s./p.)

3 ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Frederico. A expansão do ensino de Direito: massificação que desqualifica ou democratização a serviço da prática da justiça no Brasil? Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP: UFSCar, 2007. file:///D:/Tese%20Fernando%20Frederico.pdf

4 Ibidem (s./p.)

5 Ibidem (s./p.)

6 BARROS, Renato Cassio Soares de. Ensino do Direito do Trabalho no Brasil: desvela a realidade ou reproduz a lógica do capital? Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, UFSCar, 2015. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/2376/6828.pdf?sequence=1&isAllowed=y

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Renato Cassio Soares de Barros
Pós-doutorando no Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, Largo São Francisco. Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, com ênfase no Ensino do Direito do Trabalho. Sócio do escritório de advocacia "Barros & Hyppolito Sociedade de Advogados". Presidente da Comissão de Ética e Disciplina da OAB São Carlos.