Hoje, 28 de janeiro é o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo. Instituído pela Lei n. 12.064 de 2009, com a finalidade de homenagear os auditores fiscais do trabalho: Erastótenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, além do motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados em 28 de janeiro de 2004, quando apuravam denúncias de trabalho escravo em fazendas da região de Unaí (MG), episódio conhecido nacionalmente como Chacina de Unaí.
A citada lei também instituiu a Semana Nacional de combate ao Trabalho escravo, com a finalidade de dar visibilidade ao problema, além de esclarecer a sociedade brasileira sobre o crime em questão, para que a mesma passe a exigir cada vez mais do Poder Público seu combate e erradicação.
O trabalho escravo contemporâneo está tipificado atualmente no art. 149 do Código Penal, alterado pela Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, antes dessa alteração legislativa, o referido tipo penal exigia que o sujeito ativo transformasse a vítima em pessoa totalmente submissa à sua vontade, como se escravo fosse.
Nesse sentido, após a modificação legislativa, o crime passou a ser caracterizado pela maioria da doutrina, independentemente da privação de liberdade, uma vez que o objetivo principal dessa alteração foi de conferir um tratamento mais abrangente à matéria, e não de conceituar e punir o trabalho escravo no sentido estrito do termo.
Logo, para a configuração do crime de redução a condição análoga à de escravo, dispensa-se que esta condição seja igual àquela desfrutada pelos indígenas e depois pelos negros, na época da escravidão legalizada no Brasil, porque, senão, estar-se-ia adotando uma concepção estereotipada, e, nesse sentido, o crime somente se consumaria com a constatação de trabalhadores acorrentados e vigiados vinte e quatro horas por dia, por exemplo.
Infelizmente, o estereótipo da escravidão legalizada no Brasil, ainda tem influenciado um considerável seguimento jurisprudencial a entender que só há o crime de redução a condição análoga à de escravo se houver também uma espécie de “cárcere privado”.
De acordo com a nova disposição, as condutas caracterizadoras do crime em questão passaram a ser: submeter o trabalhador a trabalhos forçados; a jornadas exaustivas; a condições degradantes de trabalho e restringir sua locomoção, por qualquer meio, em razão de dívida contraída com empregador ou preposto.
Além dessas, a citada lei ainda introduziu, no parágrafo primeiro do artigo 149, três hipóteses de trabalho análogo ao de escravo por equiparação, que consistem nas condutas de: cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; manter vigilância ostensiva no local de trabalho com a finalidade de impedir fugas e vigiar a execução do trabalho e o apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
A ampliação do rol de hipóteses que caracterizam o trabalho escravo, além de ter tornado mais fácil a tipificação do ilícito no caso concreto, passou a ter como objetivo principal, a proteção da dignidade da pessoa humana.
Desta feita, o trabalho análogo ao de escravo, ao violar os direitos básicos do trabalhador brasileiro, como o direito ao trabalho digno, atinge a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua vontade, fazendo com que o trabalhador deixe de ter domínio sobre si mesmo. Por isso que, mesmo sem ter sua liberdade de ir e vir cerceada, por meio da coação física, ainda permanece cativo executando aquele tipo de labor.
No entanto, o estereótipo da escravidão legalizada no Brasil, ainda tem influenciado um considerável seguimento jurisprudencial a só configurar o crime de redução a condição análoga à de escravo, se for constatado a total sujeição da vítima (moral e fisicamente) ao poder do sujeito ativo do crime, ao ponto deste suprimir, integralmente, o estado de liberdade daquela.
Isto se deve ao fato de que é tendência dos aplicadores da lei utilizar como elemento histórico para comparação, o modelo de escravidão implementado no Brasil, entre os séculos XVI a XIX. No entanto, o “trabalho escravo” presenciado nos dias atuais possui inúmeras diferenças em relação à escravidão existente no período colonial em nosso país, não importando em dizer com isso, que esta era menos cruel do que a atual.
Dentre as principais diferenças listamos as seguintes: a escravidão antiga era permitida pelo ordenamento jurídico da época; o custo de aquisição de mão de obra era alto, razão pela qual a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos que ela detinha; a relação existente entre o escravo e o seu senhor era de longa duração, transmitindo-se aos seus descendentes e, ainda, os lucros gerados eram baixos, uma vez que os escravagistas tinham que arcar com todos os custos para a manutenção dos seus escravos, tidos como extensão de suas propriedades.
Já o trabalho análogo ao de escravo é vedado pela legislação pátria; o custo da aquisição da mão de obra é muito baixo, pois não existe a compra da pessoa do escravo, ocorrendo às vezes somente o gasto com transporte do trabalhador para o local de trabalho; a relação é de curta duração, sendo que na maioria das situações o contato se restringe à pessoa do aliciador ou gerente do estabelecimento e os lucros são altos, visto que os “escravos” de hoje são homens livres, rebaixados à condição de escravo, inexistindo o direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, e, na grande maioria das vezes, não recebem seus salários e demais direitos trabalhistas, sendo considerados, ainda, mão de obra de fácil substituição.
Assim, a imagem do antigo escravo negro, acorrentado e submetido às senzalas, não corresponde à vítima do trabalho escravo contemporâneo, ainda que os castigos impostos aos trabalhadores de hoje possam corresponder a um padrão de maus-tratos herdado da escravidão colonial que afetou o Brasil.
Conforme esclarece Brito Filho (2015) a escravidão legalizada no Brasil é distinta da prática atual, uma vez que aquela era consentida pelo Direito e dirigida a pessoas não livres, tidas como propriedade de seus senhores, e esta é projetada ao arrepio do ordenamento jurídico e praticada contra seres humanos livres. Portanto, conclui o autor, que utilizar como fonte comparativa situações distintas entre si, muito embora com resultados semelhantes, pode ocasionar confusão na interpretação do tipo penal, uma vez que poderá sugerir a busca de uma tipicidade na conduta que, dificilmente, será encontrada.
Infelizmente, é justamente a imagem do “escravo negro” que tem influenciado o poder judiciário e dificultado o enfretamento da questão na atualidade, uma vez que situações de trabalho escravo que não correspondem a essa imagem são muitas das vezes descartadas por juízes, deixando de ser punidas como práticas de trabalho escravo contemporâneo.
Além disso, a repressão ao referido crime vêm sendo diminuída/atacada nos últimos anos, fato esse constatado pelos vilipêndios sofridos tanto pela Inspeção do Trabalho, quanto pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Federal, com o único propósito de fragilizar seus poderes e competências.
Nesse sentido, questiona-se a redução abusiva do número de auditores fiscais do trabalho e seus programas especializados, como os de combate ao trabalho escravo. O fato do poder executivo deixar de prover quase 1500 cargos, revela ou uma intenção extintiva ou, no mínimo, de busca de insuficiência e ineficácia absoluta dos trabalhos de prevenção e repressão ao crime do trabalho análogo ao de escravo em nosso país.
Valena Jacob
• Diretora Adjunta do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA
• Doutora e Mestre em Direito pelo PPGD/ UFPA
• Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Direito da UFPA
• Diretora da Associação Luso Brasileira de Juristas Trabalhistas – JUTRA
• Diretora da Escola Judicial da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT.