Manifesto idealizado pelo juiz do Trabalho da 15ª Região, Jorge Luiz Souto Maior recebeu o apoio de várias
entidades e advogados.
Neste boletim, a ABRAT divulga, na íntegra, o teor do manifesto.
Ao tentar convencer a sociedade brasileira e o mundo acerca da pertinência da realização da Copa de 2014 no Brasil, o governo brasileiro, aliado à FIFA, assumiu o compromisso público, constante expressamente no art. 29 na Lei Geral da Copa, de que: Art. 29. O poder público poderá adotar providências visando à celebração de acordos com a FIFA, com vistas à:
I – divulgação, nos Eventos:
b) de campanha pelo trabalho decente; (grifou-se) Ocorre que, em concreto, resolveram fazer letra morta do compromisso e das normas constitucionais inseridas na órbita dos direitos fundamentais de proteção ao trabalhador ao vislumbrarem a utilização da lei do trabalho voluntário para a execução de serviços durante a Copa às entidades ligadas à FIFA e mesmo aos governos federal e locais, institucionalizando, assim, a figura execrável da precarização do trabalho, que se aproveita da necessidade do trabalhador em benefício desmedido do poder econômico, reproduzindo e alimentando, por torpes razões, a lógica do trabalho em condições análogas à de escravo.
Lembre-se que o trabalho decente é um conceito difundido pela Organização Internacional do Trabalho exatamente para impedir a execução de trabalho sem as garantias trabalhistas. Verdade que a legislação nacional (Lei n. 9.608/98), de discutível constitucionalidade, permite o trabalho voluntário, sem a garantia dos direitos trabalhistas, mas esse serviço, que pode ser prestado “a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos”, deve possuir objetivos “cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade”.
Ora, a FIFA está longe de ser uma entidade sem fins lucrativos e os serviços necessários à prática do futebol durante a Copa do Mundo, evento que é, como se sabe, um dos mais lucrativos do mundo, senão o maior, tendo sido este, aliás, o fundamento utilizado pelo próprio governo para a realização da Copa no Brasil, estão, portanto, muito distantes de se inserirem em algum dos permissivos legais acima destacados, sem falar, é claro, das normas de proteção ao trabalho inseridas na ordem constitucional como preceitos fundamentais.
A agressão à nação brasileira, considerada na perspectiva de um Estado de Direito, organizado sob as bases da essencial preservação da dignidade humana, é tão afrontosa que a FIFA não tem o menor pudor em expressá-la em seu “site” oficial:
12 – O que eu vou receber por trabalhar na Copa do Mundo da FIFA e nos seus eventos auxiliares?
O trabalho voluntário é por natureza um trabalhosem remuneração. Por conta disso, não haverá pagamentode nenhum tipo de salário ou ajuda de custo para hospedagem. Porém, visando não gerar ônus, o COL e a FIFA irão fornecer os uniformes, um auxílio para o deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação durante o período em que estiver atuando como voluntário. (grifou-se)
13 – Qual a duração do turno diário de trabalho voluntário?
O turno diário de trabalho voluntário durará até 10 horas. (grifou-se)
14 – Por quanto tempo preciso estar disponível para o evento?
É necessário ter disponibilidade de pelo menos 20 dias corridos na época dos eventos.
15 – Existe alguma diferença entre os tipos de voluntários?
Existem algumas funções que possuem requisitos muito específicos e, por isso, necessitam de conhecimentos e habilidades específicas. Isso leva à criação de uma organização baseada em Especialistas e Generalistas:
Os especialistas atendem a áreas como imprensa, departamento médico, serviços de idioma, etc.;
Os generalistas atendem a todas as outras áreas de trabalho e têm foco no atendimento ao público em geral.
16 – Eu não moro em nenhuma das sedes da Copa do Mundo da FIFA. Vou poder participar?
A inscrição online pode ser feita de qualquer local, mas é importante que as pessoas saibam que terão de
estar disponíveis para o trabalho no período determinado e na cidade na qual forem alocados/escolherem,
sabendo que o COL não proverá nenhum tipo de auxílio para a hospedagem.
(….)
18 – Os voluntários poderão assistir aos jogos?
Não serão disponibilizados assentos para os voluntários.Alguns poderão estar trabalhando nas arquibancadas cadas ou em áreas com visibilidade para o campo, mas é importante lembrar que estarão trabalhando e, por isso, não deverão ter tempo para assistir aos jogos. Nos intervalos do seu horário de trabalho, no entanto, poderão ir ao Centro de Voluntários, onde poderão assistir por alguns momentos a alguma partida que esteja sendo transmitida.
Ou seja, por um trabalho obrigatoriamente prestado por 10 (dez) horas diárias e em pé, já que “não serão disponibilizados assentos para os voluntários”, realizado de forma tão intensa ao ponto de não sobrar tempo para que os “voluntários” possam ver os jogos, mesmo que estejam em área com visibilidade para os jogos, desenvolvido durante “pelo menos 20 (vinte) dias corridos”, ou seja, sem qualquer interrupção, a FIFA, “para não se onerar”, oferece, em contrapartida, “uniformes, um auxílio para o deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação durante o período em que estiver atuando como voluntário”, de modo a transparecer que os cidadãos brasileiros (ou estrangeiros) devem ser gratos pela esmola concedida, até porque se der, segundo a visão da FIFA, “nos intervalos do seu horário de trabalho” esses “voluntários” poderão ir ao Centro de Voluntários, “onde poderão assistir por alguns momentos a alguma partida que esteja sendo transmitida”, ou seja, com sorte, conseguirão assistir um pouco da partida pela televisão, o que todos os demais cidadãos do mundo terão acesso gratuitamente, sem sair de casa.
O pior é que o governo brasileiro se aliou a essa ofensa à ordem constitucional e vislumbra, ele próprio, conforme já declarou publicamente, utilizar o trabalhode até 18mil “voluntários”.
Assim, considerando que a previsão dos “voluntários” para a FIFA é de 15 mil, é possível vislumbrar que um dos legados certos da Copa seria o histórico de que durante a Copa ter-se-ia evidenciado um estado de exceção constitucional quanto aos direitos fundamentais trabalhistas, negando-se a condição de cidadania a pelo menos 33 mil pessoas (brasileiras ou não, cabendo não olvidar que na perspectiva dos direitos trabalhistas a Constituição não faz nenhuma diferença entre brasileiros e estrangeiros).
O problema real para o governo brasileiro, para a FIFA e para os interesses econômicos em jogo é que parte da comunidade jurídica e acadêmica ligada às questões das relações de trabalho no Brasil não está disposta a aceitar que essa agressão à ordem constitucional seja consumada, ao menos não sem tensão e sem a fixação histórica dos responsáveis pela prática em questão, para um julgamento posterior.
Devemos, pois, usar todos os instrumentos jurídicos e políticos que tivermos à disposição para impedir esse atentado à ordem constitucional, até porque, sem objeção, o que pode restar como legado da Copa é uma séria acomodação diante de posterior utilização e ampliação desta ou de outra fórmula jurídica de precarização do trabalho.
Não pretendemos, nos limites desse Manifesto, adentrar a discussão entre os que dizem “não vai ter Copa” e os que afirmam “vai ter Copa”. O que queremos deixar consignado em alto e bom tom é: Não vai ter trabalho “voluntário” na Copa!
Entidades Apoiadoras do Manifesto Além das entidades, o manifesto foi assinado ainda por centenas de profissionais ligados ao mundo do Trabalho.
A seguir as entidades que o apoiam:
. ABRAT – Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas
. ALAL – Associação Latino-americana de Advogados Laboralistas
. ALJT – Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho
. ANPT – Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho
. Centro Acadêmico XI de Agosto – Faculdade de Direito USP
. Coletivo Canto Geral – Faculdade de Direito USP
. Coletivo Feminista Dandara – Faculdade de Direito USP
. Coletivo para Além das Arcadas – Faculdade de Direito USP
. Comissão de Direitos Humanos da AMATRA XV – Campinas/SP
. GPTC – Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital – Faculdade
de Direito USP
. Saju Cooperativas – Faculdade de Direito USP