Renato Cassio Soares de Barros
Crítica à atuação do STF e defesa da Justiça do Trabalho como pilar essencial na proteção dos direitos sociais e no combate às desigualdades estruturais.
É notória a manobra utilizada para esvaziar a competência da Justiça do Trabalho. O STF inconstitucionalmente tem caçado decisões trabalhistas que se submeteram à dilação probatória a respeito de matéria de fato, que declararam nulos contratos entre pessoas jurídicas ou autônomo. As decisões da Justiça do Trabalho tiveram como base a realidade da relação jurídica entre as partes, cujo contrato visava mascarar a relação de emprego e fraudar a legislação trabalhista, mas foram ignoradas pela Corte Suprema.
O que se constata é o reino da ideologia de rejeição aos direitos sociais. Essa ideologia encontra conforto na ausência de resistências sociais advindas da desmobilização das organizações sindicais. Há liberdade para atacar a Justiça do Trabalho, de forma indireta, esvaziando sua competência para, quem sabe, em um futuro próximo, em um golpe fatal, postular a sua extinção.
Constituição Federal de 1988, ao dispor em seu art. 114 sobre a competência da Justiça do Trabalho, conferiu a este ramo do Judiciário a missão de processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, inclusive envolvendo entes da administração pública direta e indireta e os de direito público externo. Esse comando normativo traduz um compromisso do Estado brasileiro com a efetivação dos direitos sociais e com a preservação da paz nas relações laborais, mas esse compromisso é relativizado com a subtração da competência da Justiça do Trabalho para julgar demandas que envolvem funcionários públicos e agora com constantes decisões que invadem a competência dessa Justiça Especializada.
A exemplo de esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho: a) a tese de repercussão geral, Tema 1.143, que define que “a Justiça Comum é competente para julgar ação ajuizada por servidor celetista contra o Poder Público, em que se pleiteia parcela de natureza administrativa”; b) o Tema 550, que fixa a tese de que “preenchidos os requisitos dispostos na lei 4.886/1965, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes.” e, c) o Tema 1.389, cuja repercussão foi reconhecida pelo STF no julgamento do ARE 1.532.603, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que em Decisão publicada em 14 de abril de 2025, determinou a suspensão nacional de todos os processos em tramitação no território brasileiro que versem sobre: i) a competência da Justiça do Trabalho para julgar supostas fraudes em contratos civis de prestação de serviços; ii) a validade da contratação de pessoas jurídicas ou trabalhadores autônomos e iii) a definição do ônus da prova quanto à alegação de fraude contratual.
A Justiça do Trabalho é braço do Estado essencial à contenção das desigualdades estruturais no mundo do trabalho, típicas de uma sociedade marcada pela concentração de riquezas e pela assimetria entre capital e trabalho. Ao garantir que as demandas oriundas das relações laborais sejam apreciadas com especialização e celeridade, essa Justiça assegura não apenas o cumprimento dos direitos previstos na legislação, mas atua como um elemento de equilíbrio frente às forças econômicas e políticas que tendem a marginalizar o trabalhador.
Ao contrário do que muitos pensam ou não querem admitir, a atuação da Justiça do Trabalho não se resume à resolução de conflitos individuais. Ela possui um papel pedagógico e político de afirmar valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e a primazia do interesse social sobre o econômico. Em um cenário de precarização das relações laborais, ela se torna ainda mais relevante como instância de resistência jurídica e institucional às violações de direitos fundamentais, a efetivar o Estado Democrático de Direito.
Preservar, fortalecer e respeitar a competência da Justiça do Trabalho é assegurar um dos principais instrumentos de realização da justiça social no Brasil, promovendo equilíbrio entre os fatores de produção e garantindo a efetividade dos direitos conquistados historicamente pela classe trabalhadora.
A Justiça do Trabalho é a do ramo do Poder Judiciário que mais incentiva e realiza acordo, em aplicação do positivado no parágrafo primeiro do art. 764, da CLT. O olhar pelas lentes da advocacia permite compreender que, por meio dos acordos trabalhistas, não poucas vezes ocorrem renúncias de direitos, seja por necessidade financeira ou por incerteza da demanda pelo trabalhador, contribuindo para a renúncia de direitos. A ideologia de ódio da classe trabalhadora e, consequentemente, da Justiça do Trabalho se revela preconceituosa e vazia do ponto de vista da realidade social.
Se a autotutela é vedada como regra e a sociedade instituiu a função judiciária para julgar os conflitos de interesse e, se da relação jurídica de emprego surge o conflito, nada mais natural que o exercício do direito público subjetivo de invocar a tutela jurisdicional e ter o pleito apreciado pela Justiça Especializada. Por óbvio, sociedade ideal seria aquela na qual não ocorressem conflitos sociais e todos os direitos fossem observados, a dispensar a atuação ou existência do Poder Judiciário, porém essa não é a realidade. Ideal seria a sociedade que Thomas More descreve em A Utopia, mas, se as relações materiais e espirituais de vida não alcançam o ideal e a ausência de evolução social gera os conflitos, não é lógico e nem razoável atribuir a culpa à classe trabalhadora, que vive para o trabalho, e ainda necessita do Estado judiciário. Não é racional e nem constitucional é o esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho.
A ideologia de resistência ao reconhecimento da legitimidade da reivindicação da classe trabalhadora e da importância da Justiça do Trabalho é fruto da escravização do negro. Até um passado próximo o sistema normativo brasileiro legitimava o trabalho forçado, sem remuneração: somos herdeiros da sociedade escravista e os reflexos negativos desse modelo de sociedade e de produção de riqueza ainda nos assombram.
Pensar o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho cientificamente conduz ao exercício de tentativa de compreensão do direito e a sua função na sociedade para melhorar a vida dos cidadãos. A relação de trabalho é complexa e contraditória, mas tem a estrutura do Estado e o Direito do Trabalho como sistema amortecedor e controlador das oscilações existentes entre a classe trabalhadora e a tomadora do trabalho, cujo objetivo maior é manter a classe trabalhadora – as forças produtivas – a serviço da classe tomadora burguesa – das relações de produção. (BARROS, 2015)1.
Levando em conta o raciocínio desenvolvido nas linhas antecedentes, é possível concluir que da complexidade e contradições inerentes à relação de trabalho, como expressão das desigualdades estruturais que marcam o modo de produção capitalista, a Justiça do Trabalho se revela como instrumento fundamental de contenção dos abusos do poder econômico e de promoção da dignidade do trabalho. Em tempos de avanço da ideologia que deslegitima os direitos sociais e demoniza os mecanismos de proteção ao trabalho, a Justiça do Trabalho permanece como uma das últimas trincheiras do Estado Democrático de Direito voltada à efetivação da justiça social. Sua atuação – ainda que limitada pelas estruturas que buscam submeter o direito à lógica do capital – é imprescindível para garantir um espaço de resistência jurídica, acolhimento da classe trabalhadora, equilíbrio das relações sociais, e preservação da ideia de que o trabalho com dignidade é essencial para a cidadania e condição humana.
1 BARROS, Renato Cassio Soares de. Direito do Trabalho: formação jurídica e a lógica do capital. 1.ed. Jundiaí, SP, Paco, 2021.
Fonte: www.migalhas.com.br