O Brasil contabiliza 46.478 trabalhadores libertados em condições análogas à de escravos desde 1995, ano em que os grupos móveis de fiscalização passaram a atuar no país. O trabalho das equipes, compostas de auditores fiscais, procuradores do Trabalho e policiais federais ou rodoviários federais, completa 20 anos em 2014.
Só no ano passado, quando foram comemorados os 125 anos da Lei Áurea, 2.063 pessoas foram resgatadas, de acordo com números do Ministério do Trabalho e Emprego, o que representa uma média de mais de 5 pessoas por dia. O número de operações em 2013 foi recorde: 177.
O chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, Alexandre Lyra, diz que o número é expressivo. “O fato de haver mesmo que apenas um trabalhador encontrado já é motivo de vergonha. Mas se hoje já chegam a 46 mil é porque a gente está atuando, indo a campo. Então a gente não pode ser punido pelo trabalho que é feito. O Brasil é uma referência no enfrentamento e reconheceu o problema em seu território.”
Para Elizabete Flores, do programa de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o número de trabalhadores não alcançados, no entanto, ainda é grande. “Há uma quantidade enorme de fiscalizações que não são feitas. E, nos rincões, as fiscalizações não chegam. Apesar de o número de libertados ser expressivo, ele ainda não mostra a realidade do trabalho escravo no Brasil”, afirma.
Libertações e aliciamento
Dados do ministério tabulados pelo G1 mostram que, contabilizados os últimos cinco anos, Minas Gerais lidera o ranking tanto de libertações como de trabalhadores aliciados.
Minas registra 2 mil pessoas resgatadas no período. Logo atrás está o Pará, com 1.808. Goiás, com 1.315, São Paulo, com 916, e Tocantins, com 913, compõem o grupo dos cinco mais.
Minas também é o principal estado de origem dos trabalhadores libertados. De acordo com o levantamento, 1.643 trabalhadores foram aliciados pelos chamados “gatos” (os intermediadores da mão-de-obra) no estado do Sudeste. O Maranhão aparece logo atrás, como terra natal de 1.641 pessoas resgatadas. Pará, com 1.395, Bahia, com 1.325, e Goiás, com 775, são os outros estados onde mais trabalhadores são arregimentados.
Flávia Gotelip, coordenadora do Programa de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Defesa Social de MG, diz que o alto número de resgates no estado é decorrente do empenho em acabar com a prática. “Há uma força-tarefa, envolvendo a sociedade civil organizada, com forte atuação dos sindicatos, e órgãos públicos como o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Federal, com o apoio das polícias, que faz com que o número de denúncias seja grande e o de operações também.”
O fato de haver mesmo que apenas um trabalhador encontrado [em condição análoga à escravidão] já é motivo de vergonha. Mas se hoje já chegam a 46 mil é porque a gente está atuando, indo a campo. Então a gente não pode ser punido pelo trabalho que é feito. O Brasil é uma referência no enfrentamento e reconheceu o problema em seu território"
Alexandre Lyra, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do ministério
Sobre o aliciamento, Flávia diz que há um trabalho conjunto de várias secretarias para tentar evitar que essas pessoas sejam submetidas a condições degradantes de trabalho, especialmente nas regiões de grande vulnerabilidade, como no norte do estado.
“A gente tem uma migração sazonal muito forte em função de lavouras de café, de plantações de cana. Nesses períodos de entressafra, essas rotas se acentuam. E, neste momento, nos grandes centros urbanos, nas cidades polo do estado, há uma demanda por trabalhadores da construção civil, muitas vezes com um serviço extremamente pesado, sem capacitação adequada, com alojamentos improvisados ou que nem sequer são oferecidos.”
Ela diz que há um acompanhamento dos libertados e que os contatos com outros estados são constantes. “Se não houver uma ação articulada para somar esforços públicos e reinserir esses trabalhadores, o risco de reincidência é muito grande. Por isso, é preciso um trabalho que rompa barreiras de territórios, para acabar com o ciclo de violações reiteradas de direitos humanos.”
PEC do Trabalho Escravo
Uma das principais reivindicações das entidades hoje para combater a prática é a aprovação da chamada PEC do Trabalho Escravo. A proposta de emenda à Constituição já tramita há 15 anos no Congresso.
A expectativa, no entanto, é que ela vá finalmente à votação em dois turnos no Senado e seja encaminhada à sanção. A PEC determina que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde for flagrada a exploração de trabalho escravo sejam expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular.
Elizabete Flores, da CPT, diz não acreditar, entretanto, que a proposta passe ainda em 2014. “É ano eleitoral. E como os ruralistas querem mudar o conceito de trabalho escravo, tirando a questão das condições degradantes, não vão querer ir pro embate. No ano passado houve várias mobilizações, entidades foram para o Congresso”, afirma.
Até no navio
Apesar de o trabalho escravo estar geralmente associado ao campo, essa realidade vem se transformando. Dados da CPT mostram que, em 2013, pela primeira vez o número de libertações na cidade foi maior que o da área rural. Um dos motivos apontados é o boom de grandes obras no Brasil.
O G1 conversou com sete trabalhadores resgatados em uma obra de uma escola em São Paulo neste ano. Arregimentados em Barras (PI), eles deixaram a cidade do Nordeste com a promessa de ganhos de até R$ 4 mil por mês. Já chegaram, no entanto, devendo as passagens, o aluguel do alojamento e a alimentação. Dividindo um cubículo de 3,5 metros por 4 metros, sem camas, armários e o mínimo de higiene e após dois meses sem receber nada, eles conseguiram denunciar a situação (veja vídeo ao lado feito pela CSP-Conlutas).
“Apesar de nove anos viajando, essa foi a pior situação pela qual passei na minha vida. A nossa condição era de animal, não de ser humano”, afirmou Reginaldo Viana da Costa, de 26 anos.
Em nota, a Kallas Engenharia, responsável pela obra, disse que sua política corporativa estabelece “o respeito intransigente à legislação trabalhista e o combate à utilização de mão de obra submetida a condições inadequadas de trabalho” e que, por isso, a empresa subcontratada que arregimentou os trabalhadores foi excluída do quadro de fornecedores.
A Kallas afirmou ainda ter pago todos os encargos trabalhistas devidos pela empreiteira, além dos custos de hospedagem, retorno ao Piauí e deslocamento de Teresina para Barras.
Um outro caso que chamou a atenção neste ano foi o dos 11 trabalhadores resgatados de um navio na Bahia. Eles relataram xingamentos, turnos de trabalho de 22 horas e até assédio sexual.
O procurador do Ministério Público do Trabalho Rafael Garcia classificou o episódio de “trabalho escravo moderno”, já que os resgatados eram, em sua maioria, universitários e bilíngues. “Toda e qualquer atividade, se não tiver fiscalização, pode impulsionar características extremas de trabalho. Isso ocorre em qualquer ramo profissional. A busca pelo lucro, muitas vezes, não encontra barreiras", afirmou.
A MSC, alvo da fiscalização, disse estar em total conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e repudiou a ação do Ministério do Trabalho.
‘Lista suja’
Os flagrantes ocorrem dez anos após a implementação da “lista suja”, o cadastro de empregadores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravos, considerado o principal instrumento de combate à prática no país.
Quando um nome é incluído na relação, instituições suspendem financiamentos e acesso a crédito. Empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo também aplicam bloqueios e restrições comerciais. Atualmente, há 568 pessoas físicas e jurídicas incluídas na lista.
“É o maior instrumento de repressão e prevenção que existe hoje. Eu nunca vi um desconforto em relação aos autos de infração, à tipificação da conduta como criminosa, mas a inclusão no cadastro incomoda e faz com que o empregador se articule. Primeiro, porque há um dano à imagem da empresa. Segundo, porque o mercado se organizou e passou a não dar crédito e a impedir transações comerciais”, afirma Alexandre Lyra, do Ministério do Trabalho.