Em tempos em que se percebe a banalização de discursos preconceituosos de toda espécie e o desprezo aos direitos humanos, é imprescindível voltar a memória para um passado não muito distante. Esse exercício viabiliza a lembrança das barbáries cometidas pelo homem contra o homem. Não se vê como se pode relativizar o extermínio realizado por regimes fascistas e antissemitas. Não se pode admitir, minimamente, que atrocidades beluínas se repitam. Foi com esse escopo que o Parlamento Europeu, Órgão Legislativo da União Européia, instituiu o dia 09 de novembro, como o Dia Internacional contra o fascismo e o antissemitismo, em memória à “Noite dos Cristais” (Kristallnacht ou Reichspogromnacht), um dos episódios mais sombrios da humanidade. Na noite de 09 para 10 de Novembro de 1938, em toda a Alemanha e Áustria, incendiaram-se sinagogas. Símbolos judaicos foram profanados. Residências e casas comerciais judaicas foram invadidas. A partir desse desumano acontecimento, deu-se início ao mais terrível e insano massacre: o Holocausto nazista e a morte de mais de 06 milhões de seres humanos.
A alegação do Partido Nazista para a selvageria intentada na noite de 09 para 10 de novembro de 1938, resumiu-se numa única palavra: represália. Segundo consta, o diplomata alemão Ernst vom Rath, que residia em Paris, teria sido vítima de um atentado levado à efeito por Herschel Grynszpan, estudante de 17 anos, polonês de nascimento, que morava na Alemanha. Grynszpan, revoltado porque seus pais teriam sido expulsos da Alemanha, dirigiu-se à Embaixada alemã, em Paris, com a intenção de assassinar o Embaixador alemão. Por motivos que não se sabe, acabou por vitimar o diplomata Ernst vom Rath. Esse foi o motivo que o Partido Nazista encontrou para justificar a Kristallnacht, reforçando a propaganda antissemita que há muito já se instalara na Alemanha.
A Noite dos Cristais, um grande pogrom – palavra russa que significa causar estragos, destruir violentamente – faz menção aos cacos de vidros que se espalharam pelas cidades, decorrentes da destruição de vidraças de sinagogas, casas e lojas da comunidade judaica. A maior parte daqueles que participaram da chacina não vestiam uniforme, uma vez que o ataque deveria parecer espontâneo, sem nenhuma vinculação com o Partido Nazista. Mais recentemente, análises efetuadas a documentos acadêmicos feitos por historiadores como Richard Evans(1) referem cerca de 91(noventa e um) mortos, mil sinagogas incendiadas, sendo 95(noventa e cinco) em Viena, sete mil mil casas comerciais destruídas ou danificadas com marretas. Quando se inclui as mortes posteriores, devido a maus-tratos dos judeus detidos e suicídios, o número de mortos ascende a centenas. Para além das vítimas mortais, cerca de 30 000 (trinta mil) judeus foram enviados para os campos de concentração e extermínio de Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen. O pogrom foi encerrado por meio de uma ordem emitida por Joseph Goebbels, então Ministro da Propaganda do Partido Nazista, em 10 de novembro de 1938.
O dia 09.11.1938 é visto de maneira simbólica por muitos historiadores na medida em que consolidou a guinada da violência na Alemanha contra os judeus e deu abertura ao processo de encarceramento em campos de concentração e extermínio. A partir daquela noite a mensagem do Partido Nazista antissemita dada para os judeus foi de que a violência contra eles aumentaria consideravelmente. Até então a situação dos judeus era extremamente delicada em diversos sentidos, pois sofriam cada vez mais com a discriminação que existia na sociedade alemã e muitos de seus direitos civis e liberdades individuais estavam sendo retirados pelos nazistas. Estas leis tiveram como resultado a exclusão dos judeus da vida social e política da Alemanha. Muitos procuraram asilo no estrangeiro. Centenas de milhares emigraram. Como escreveu, em 1936, Chaim Weizmann (2) químico, cientista, estadista, primeiro presidente de Israel: “O Mundo parecia estar dividido em duas partes—aqueles lugares onde os judeus não podiam viver, e aqueles onde não podiam entrar”.
Logo após a notícia do atentado da Noite dos Cristais espalhar-se, ataques contra judeus foram organizados, espontaneamente, na Alemanha. O que veio a seguir, porém, foi uma ação coordenada pelo governo nazista que aconteceu em todo o território alemão. As ordens de Hitler e de Goebbels para os membros do partido foram diretas e ordenavam que ataques contra os judeus fossem organizados no país. Esses ataques, porém, deveriam acontecer de uma maneira que aparentasse não envolver o governo alemão. A ideia, portanto, era fazer com que o ataque contra os judeus passasse a impressão de ação espontânea da população.Com essa ordem transmitida, os funcionários do Partido Nazista começaram a entrar em contato com líderes partidários locais e com as tropas de assalto, passando-lhes instruções de como proceder no ataque contra judeus. As instruções incluíam algumas ordens:
Não deveriam acontecer pilhagens (saques);
Judeus estrangeiros não deveriam ser atacados em hipótese alguma;
Lojas judaicas não deveriam ser incendiadas para não danificar propriedades de alemães.
Com as instruções fornecidas, os grupos de nazistas, a maioria vinculada às tropas de assalto, mobilizaram-se e partiram para o ataque contra os judeus.
Paradoxalmente e, após exatos 51 anos, em 09 de novembro de 1989, a Alemanha comemorava a queda do Muro de Berlim que não só dividiu a capital alemã mas separou, fisicamente, os homens por quase 30 anos, exclusivamente por conta de seus pensamentos ideológicos antagônicos.
Considerando essas duas ocorrências históricas – a “Noite dos Cristais” e a queda do Muro de Berlim – os alemães outorgaram ao dia 09 de novembro o título “Schicksalstag” ou, literalmente, “Dia do Destino”, em alemão.
Que o dia 09 de novembro seja lembrado como o dia em que a liberdade é intrínseca à condição humana e somente à ela os seres humanos estão condenados.
(1) Berenbaum, Michael & Kramer, Arnold (2005). The World Must Know. United States Holocaust Memorial Museum. p. 49.
(2)Manchester Guardian, 23 de Maio de 1936, citado em Island Refuge, Britain and the Refugees from the Third Reich, 1933–1939de A.J. Sherman, (Londres, Elek Books Ltd, 1973), p. 112
Taube Goldenberg, advogada trabalhista em São Paulo