1. A Justiça do Trabalho e as relações laborais no Brasil do século XXI regem-se pelos princípios e normas jurídicas consagrados na Constituição democrática de 1988. O direito e a realidade social dos dias de hoje não são os mesmos de cinqüenta anos antes, e várias razões, que passaremos a expor, recomendam amplo reexame do tema honorários de advogado nesta Justiça Especializada.
2. Sabe-se da origem do judiciário trabalhista brasileiro, há quase um século, ainda com natureza administrativa, vinculada ao Ministério do Trabalho, criada para conciliar e julgar as reclamações de empregados contra seus empregadores. Embora tenha adquirido “status” de ramo do Poder Judiciário após o advento da CLT, manteve algumas características peculiares, tais como o jus postulandi das partes (não obrigatoriedade de advogado), e a presença dos vogais e juízes classistas (extinta a partir da EC 24 de 1999). Diante da inexistência de Defensoria Pública para as lides laborais, a Lei 5584/70 (arts. 14 a 19) determinou aos sindicatos a assistência judiciária trabalhista. Cabia aos sindicatos atender aos empregados representados (associados ou não) que declarassem condição de insuficiência econômica, sem qualquer custo, mediante credenciamento de advogados e estagiários de direito. Para manter este serviço, os sindicatos receberiam honorários de até 15% dos valores das condenações, pagas pelos reclamados. Na prática, firmou-se o costume dos sindicatos repassarem integralmente aos advogados os valores recebidos a título de assistência judiciária.
3. Com a CF de 1988, o Estado assume a obrigação de prestar a assistência judiciária gratuita a todos necessitados (art. 5º, LXXIV), os sindicatos passam a ter autonomia, livrando-se da tutela estatal (art. 8º), e o advogado foi reconhecido como indispensável para a administração da Justiça (art. 133). A Justiça do Trabalho foi não apenas mantida, mas ganhou prestígio e teve sua competência ampliada, através da Emenda 45/2004.
4. Mudou também a realidade das relações de trabalho, e aumentou a consciência social. Disso resulta que atualmente os juízes trabalhistas apreciam lides bem mais complexas do que meras horas extras não pagas ou parcelas rescisórias. É de conhecimento geral que, hoje, grande parte das ações que tramitam na Justiça do Trabalho envolvem questões como responsabilidade civil do empregador por danos à saúde (acidentes de trabalho, doenças causadas ou agravadas pelo trabalho), danos físicos e psíquicos, danos materiais e extra-patrimoniais (danos morais, estéticos, assédio moral, sexual, e outros danos), decorrentes da relação laboral. Podemos citar, os pedidos de diferenças de aposentadoria complementar privada (e interpretação dos respectivos regulamentos), e também as ações movidas contra diversos reclamados, no ambiente de terceirização, com condenações solidárias ou subsidiárias, e assim por diante.
5. São temas corriqueiros, também, direitos em face de discriminações no ambiente de trabalho, com pedidos de reintegração no emprego ou indenização, além dos tradicionais pedidos de reconhecimento de vínculo de emprego, e seus consectários. Inúmeras ações tratam do impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho (p. ex. teletrabalho, controle da jornada por meios virtuais, sobreaviso com uso de celulares ou outro meio de comunicação digital). Registre-se que o próprio processo do trabalho, em si, envolve a utilização das novas tecnologias, tanto nos diversos tribunais e varas do trabalho, para controle do andamento do processo e prática dos atos processuais, bem como nos escritórios de advocacia, exigindo para tanto investimentos e profissionalização crescente. O Processo Judicial Eletrônico encontra-se em fase de implantação em todo o país, e exige certificação digital do advogado para propor a ação, apresentar defesas, recorrer, enfim para a prática de todos os atos processuais.
6. Neste cenário, o jus postulandi na Justiça do Trabalho na prática não existe mais, salvo raras situações localizadas em poucos Estados.
Quando ocorre a atermação da reclamatória, ou há acordo na primeira audiência, ou a parte constitui seu advogado para o prosseguimento do feito. Inviável, em face da atual complexidade material e processual que a ação tenha sua tramitação, com todos os recursos inerentes, sem a presença do procurador habilitado. Esta é a realidade.
7. Do ponto de vista jurídico, em face das normas constitucionais referidas, os dispositivos dos artigos 14 a 19 da Lei 5584/70 não podem mais ser aplicados. A Justiça do Trablaho é, hoje, paradoxalmente, o único ramo do Poder Judiciário em que os honorários advocatícios não são considerados despesa processual e, assim, mantém-se a extravagância de considerar a presença do advogado como “facultativa” e “dispensável” – transferindo para a parte a responsabilidade pelo custeio de um profissional que a realidade do processo mostra, a cada dia, ser mais indispensável para o sucesso em um causa trabalhista.
8. A lei ordinária que previa a obrigação sindical de prestar assistência judiciária colide com as normas constitucionais que obrigam o Estado a prestar este serviço a todos necessitados, e que afastam o sindicato de qualquer ingerência estatal. Em tal contexto, inviável pretender-se ainda nos dias de hoje exigir dos sindicatos a prestação – na prática, gratuita – de assistência judiciária aos trabalhadores, quando tal obrigação incumbe, constitucionalmente, ao Estado. Não se pode deixar de considerar como despropositadas as exigência do Ministério Público do Trabalho ao pretender exigir dos Sindicatos a prestação obrigatória de Assistência Judiciária aos trabalhadores, como se todo o arcabouço corporativo do modelo sindical-assistencialista ainda presente na CLT não tivesse sido integralmente revogado pela Constituição Democrática de 1988. O despropósito ainda é maior quando a assistência pretendida seja feita nos estreitos limites da Lei 5584/70 que limita fortemente as possibilidades de ressarcimento pelo sindicatos das despesas feitas com o advogado.
9. Certo que ao editar a Súmula 329, o TST ratificou a Súmula 219, mesmo após a vigência da CF de 1988, restringindo a concessão de honorários à hipótese da Lei 5584/70. Trata-se, sem dúvida, de fenômeno similar ao que ocorreu com a substituição processual trabalhista, quando o TST editou o enunciado de Súmula 310, negando vigência a um direito expressamente reconhecido na norma constitucional, com fundamento em norma de lei ordinária anterior a 1988.
10. Não bastasse a anunciada incompatibilidade dos dispositivos da Lei 5584/70 às normas constitucionais vigentes, ocorre que posteriores alterações legislativas vieram a revogar diretamente os artigos 14 a 19 da referida lei. A jurisprudência de TRTs de diversas regiões do país (notadamente 2ª, 3ª, 4ª, 9ª e 15ª, apenas para destacar alguns dos Tribunais Regionais do Trabalho do Brasil) tem destacado os efeitos da Lei 10.288/2001 e da Lei 10.537/2002, pois a primeira revogou expressamente a norma anterior relativa a assistência judiciária, ao inserir o parágrafo 10º no art. 789 da CLT, e a segunda revogou esta alteração ao dar nova redação ao mesmo art. 789 consolidado, sem repetir o referido parágrafo 10º, ou outra norma com mesmo conteúdo.
11. Não tendo a nova lei regulado a questão da assistência judiciária sindical, revogando a lei anterior, não se pode entender repristinada a norma revogada (Lei 5584/70), visto que o nosso sistema jurídico não prevê tal hipótese, segundo a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (art. 2º, par. 3º). Assim sendo, mesmo que se entenda que a norma da CF não tivesse retirado a vigência da Lei 5584, temos certo que as alterações legislativas mencionadas acabaram por fazê-lo, de modo que convive-se com Súmula do TST, ainda hoje, cujo texto fundamenta-se em lei não mais em vigor.
12. Há, ainda, outros argumentos, não menos importantes, a serem considerados. O Estatuto da Advocacia (Lei 8906/94) regula o exercício da profissão, cuja essencialidade para a administração da Justiça tem assento no art. 133 da CF. Institui a prerrogativa exclusiva da classe dos advogados para o exercício desta profissão, bem como que são destes a titularidade dos honorários decorrentes da sucumbência – procedência ou improcedência da ação – nos termos do art. 22 da Lei 8906. Trata-se de norma geral a respeito do tema, que, certamente, deve prevalecer em relação a uma norma anterior e específica, que regula em sentido diverso. Assim, a previsão de que aos sindicatos recairia o dever de prestar assistência judiciária aos necessitados, e aos sindicatos seriam devidos honorários correspondentes colide com tal disposição legal subseqüente.
13. Acrescenta-se, também, os dispositivos do “novo” Código Civil Brasileiro (2002), que através de seus artigos 389 e 404, asseguram o princípio da reparação integral, segundo o qual, na reparação dos danos causados, deverá o responsável ressarcir os prejuízos, neles incluindo-se além da correção monetária, juros de mora, eventual pena convencional, os honorários advocatícios. Ora, novamente estamos diante de recente e relevante texto de lei ordinária, de aplicação geral em nosso país, que assegura o pagamento da verba honorária.
14. Como já vimos, por diversas razões, as regras da Lei 5584/70 com relação a assistência judiciária sindical perderam vigência, de modo que aplica-se no processo do trabalho o contido na Lei 1060/50, bastando que a parte declare, sob as penas da lei, sua condição de insuficiência econômica para que seja-lhe assegurado o direito à gratuidade de acesso a Justiça.
15. Quanto aos honorários advocatícios, estes são devidos em face da mera sucumbência, devendo ser arbitrados na decisão judicial, com fundamento nas normas das Leis 1060/50 e 8906/94, arts. 389 e 404 do CC, e ainda art. 20 do CPC. Inexiste norma específica na legislação trabalhista que discipline a matéria de forma diversa, como antes esclarecido, de modo que plenamente viável, e mais do que isso, impositiva a aplicação das normas do direito comum, eis que perfeitamente compatíveis com as do direito do trabalho, ressalvada alguma controvérsia sobre séria dificuldade de sustento, adiante examinada.
16. Merece também ser enfrentada a questão dos honorários contratuais, ou seja, aqueles previstos em contratos de prestação de serviços jurídicos firmados entre o cliente e seu advogado (ou sociedade de advogados). Embora haja grande controvérsia quanto à competência para julgar conflitos decorrentes da execução destes contratos, que seria afeta a competência da justiça comum e não da especializada trabalhista, é certo que de forma incidental haverá tal debate na Justiça do Trabalho.
17. Em primeiro lugar, devemos ter claro que o papel do Juiz reside em solucionar conflitos e não em criá-los, portanto, salvo provocação da própria parte interessada, não cabe ao magistrado indagar a respeito da relação privada entre a parte e seu advogado. O reclamante, mesmo quando se declara pobre para os efeitos legais, e sob abrigo da justiça gratuita, permanece no exercício de seus direitos civis, como cidadão, podendo sim contratar serviços, adquirir bens e produtos, realizar operações de crédito, etc, e inclusive contratar honorários com seu advogado.
18. Deste raciocínio decorre que não existe qualquer incompatibilidade jurídica entre estar ao abrigo da justiça gratuita e contratar honorários de êxito com seu advogado, verba esta que não se confunde com os honorários de sucumbência, devidos pela parte contrária. A lei assegura ao advogado, profissional que depende de seus honorários para sobrevivência sua e de sua família, e também para continuar trabalhando, ou seja pagar as despesas de seu escritório, o direito de receber seus honorários. Inexiste, desta forma, qualquer ilegalidade na cumulação de honorários de êxito (contratuais) com honorários sucumbenciais. Ressalve-se, por evidente, eventual abuso no exercício deste direito, o que deverá ser examinado em face do caso concreto, e a partir de legítima provocação da parte interessada (no caso o cliente do advogado), quando deverá ser arbitrado judicialmente o quanto devido.
19. Por fim, resta, antes de concluir esta resenha, tratar de um argumento seguidamente mencionado pelos defensores da não-aplicação da sucumbência no processo trabalhista, o de que isso teria um efeito negativo quanto ao acesso ao judiciário, pelo risco do trabalhador ter de pagar custas e honorários advocatícios. Ora, da mesma forma como o juiz do trabalho dispensa o reclamante do pagamento de custas e outras despesas processuais (honorários de perito, p..ex.) deverá fazê-lo quanto a verba honorária advocatícia em caso de total improcedência da ação, ou improcedência de pedidos, em face da concessão da justiça gratuita (Lei 1060/50). Lembre-se da figura da compensação de honorários na procedência parcial.
20. Não acreditamos, portanto, que o princípio da sucumbência viria prejudicar o acesso à Justiça do Trabalho. Ao contrário, poderá contribuir para uma responsabilidade maior na propositura de ações, reduzindo o número de ações com escassos fundamentos jurídicos, bem como inibir iniciativas de empregadores de tentar utilizar a Justiça do Trabalho como foro de homologação de rescisões contratuais, por exemplo.
21. Em conclusão, a Justiça do Trabalho brasileira, na sua atual maturidade e grandeza, necessita atualizar-se com relação a este tema tão relevante, que diz respeito ao seu funcionamento harmônico, porque decisivo na própria relação entre advogados, partes e judiciário. O novo caminho sugere o cancelamento pelo TST das Súmulas 219 e 329, abrindo as portas da dignidade para a advocacia trabalhista, além de sinalizar para o estabelecimento de regras mais equilibradas e justas com relação aos jurisdicionados quanto à contratação de seus advogados, sem prejuízo do jus postulandi das partes, mas lançando luzes para o futuro: um processo trabalhista à altura do que espera e merece toda a sociedade brasileira.
Cláudio Antônio Cassou Barbosa
Luiz Alberto de Vargas
Maria Madalena Telesca
Ricardo Carvalho Fraga
Desembargadores do Trabalho, integrantes da 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, Rio Grande do Sul