A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) pode julgar pela primeira vez casos de violência policial no Brasil. Duas operações de repressão ao tráfico de drogas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, resultaram em chacinas com 13 mortos cada uma. O resultado da análise da Comissão de Direitos Humanos da OEA será anunciado nesta sexta-feira, dia 19, em Washington (EUA).
Ambos os casos acabaram arquivados sem que os responsáveis pelas chacinas fossem sequer indiciados, mas, após denúncias das ONGs Cejil-Brasil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e Human Rights Watch, a OEA fez recomendações ao governo brasileiro, que teve até 19 de junho para apresentar medidas. Se a comissão entender hoje que a apuração dos fatos e as providências tomadas a fim de coibir a violência policial não foram satisfatórias, o caso será encaminhado à Corte.
A Corte não pode obrigar o país a cumprir as sentenças, nem puni-lo por descumprimento – seu poder é muito mais de constranger o país internacionalmente por violação dos direitos humanos.
O desarquivamento dos inquéritos só foi determinado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) após as recomendações da OEA, que em 2012 encaminhou um relatório de 70 páginas ao governo brasileiro a partir do contato feito pelas ONGs, que denunciaram violações a diversos artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos. O relatório responsabilizou o Brasil pelas mortes, tidas como resultado de uso excessivo da força, bem como pelos atos de violência sexual, e criticou a "impunidade duradoura" dos responsáveis. "Alega-se que os agentes do Estado, policiais do Rio de Janeiro, perpetraram execuções e abuso sexuais durante as operações ocorridas em 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995", diz o relatório.
"A primeira chacina tem violência sexual contra várias jovens. As provas são mais que evidentes", afirma Biscaia.
"Não entendemos por que o caso foi arquivado. Houve até reconhecimento de policiais que cometeram os abusos. O que aconteceu foi uma barbaridade. Pediram novas diligências, e a coisa se arrastou, não caminhou", continuou o procurador, que assumiu a chefia da assessoria criminal do MP-RJ em fevereiro deste ano. Em relação às mortes, Biscaia afirma que muitas ocorreram depois que os suspeitos já estavam inclusive algemados. "Isso está comprovado nos autos. Essas vítimas foram presas. Isso é homicídio."
A chacina de 1995 – arquivada em 2007 e reaberta em 2012 – ainda não tem nenhum indiciado. "Faltam perícias e laudos. Tudo isso podia ter sido feito 15 anos atrás. Fizemos agora o que foi possível. O importante é que os dois casos estão em andamento: o primeiro, com denúncia e processo criminal; o segundo, com diligências. Não há inércia do MP", afirma Biscaia.
Fim do "auto de resistência"
Além do indiciamento dos responsáveis, a OEA solicitou ao governo brasileiro mudanças na forma de atuação da polícia e indenização às famílias das vítimas. A SDH (Secretaria de Direitos Humanos) da Presidência da República informou que, como resposta, editou, em novembro de 2012, a Resolução 8 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que determina a abolição dos termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" em registros policiais, boletins de ocorrência e inquéritos policiais.
De acordo com a resolução, qualquer morte que antes era caracterizada como auto de resistência deve passar a ser registrada como "lesão corporal decorrente de intervenção policial" ou "homicídio decorrente de intervenção policial".
De acordo com a SDH, com a medida, a investigação dessas mortes passa a exigir os mesmos procedimentos de qualquer homicídio. "A Resolução tem por intuito enfrentar a cultura de se conferir legitimidade apriorística aos óbitos decorrentes de ações policiais", afirmou a secretaria. No Estado do Rio, o texto resultou na Portaria 617 da Polícia Civil, de 10 de janeiro de 2013, que determina o fim da expressão "auto de resistência". Segundo a SDH, a resolução também foi adotada na íntegra pelo Amazonas e, em parte, por São Paulo, Pernambuco e Paraíba.
Quanto ao pagamento de indenizações, a SDH informou que o governo ainda não indenizou as famílias, mas que negociações com o Estado do Rio estão em curso. "A Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro ainda está analisando a matéria e deverá se manifestar em breve sobre o pagamento das indenizações", afirma a secretaria.
O Brasil na Corte
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, o Brasil já figurou como réu na Corte em ao menos seis ocasiões, mas nenhum dos processos envolve violência policial. Dois dos casos dizem respeito a violação dos direitos humanos no sistema prisional – Unidade de Internação Socioeducativa de Cariacica (ES) e Penitenciária Urso Branco, de Porto velho (RO) – ; outro à morte do trabalhador sem-terra Sétimo Garibaldi, em 1998; a interceptações ilegais de linhas telefônicas de membros do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), em 1999; e à morte de Damião Ximenes Lopes em uma clínica psiquiátrica de Sobral (CE), em 1999.
O caso da Guerrilha do Araguaia também chegou à Corte da OEA, que em 2010 condenou o Brasil a indenizar as famílias das vítimas e punir os responsáveis pelo desaparecimento de 62 pessoas. A responsabilização, porém, ainda não aconteceu, fato que levou a OAB a cobrar providências do governo na semana passada.
A violência doméstica sofrida pela biofarmacêutica Maria da Penha Maia, que em 1983 ficou paraplégica após duas tentativas de homicídio executadas pelo marido Marco Antonio Heredia, foi analisada pela comissão da OEA, mas o processo não chegou a ser encaminhado para a Corte. Mesmo assim o caso deu origem à lei 11.340, de 2006, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, considerada um avanço na proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar.