A pandemia da COVID-19 intensificou problemas políticos, econômicos e sociais que passaram a exigir adaptações nos mais diversos segmentos, no sentido de resguardar a regulação protetiva de direitos humanos e garantir a aplicabilidade das normas jurídicas. No mercado de trabalho, notou-se precarização e acentuação das desigualdades, situações que facilitam abusos e aumentam a necessidade de atenção estatal, sobretudo nas condições aviltantes da dignidade humana presentes nas ocorrências de trabalho escravo contemporâneo.
Em 28 de janeiro celebra-se o Dia Nacional do Combate do Trabalho Escravo e Dia do Auditor Fiscal do Trabalho, data eternizada em razão da Chacina de Unaí, ocorrida em 2004, na qual três Auditores Fiscais do Trabalho e um motorista foram mortos durante uma operação realizada no município de Unaí, em Minas Gerais. Trata-se de uma data que ressalta a importância do poder de polícia administrativa em matéria trabalhista, para efeito de conferir eficácia às normas que regulam as relações laborais em sentido amplo, especialmente no que tange à primazia do emprego, em prol de um padrão mínimo que respeite a dignidade humana e a vedação da consideração do trabalho como mercadoria, nos termos do item I, “a”, do Anexo à Declaração de Filadélfia de 1944, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O Brasil desenvolveu no artigo 149 do Código Penal o conceito atualizado pela Lei nº 10.833/2003 e referendado pela ordem internacional na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2016 condenou o país no primeiro contencioso substancialmente relacionado ao descumprimento do direito de não ser submetido à condição de escravidão. O caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde reforçou a compreensão da condição análoga à de escravo como a submissão, isolada ou conjuntamente, a (i) trabalho forçado; (ii) jornada exaustiva; (iii) condição degradante de trabalho; (iv) restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; e (v) retenção no local de trabalho em razão de cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva, ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Percebe-se, então, que a proibição do trabalho escravo no Brasil limitou-se ao plano normativo. A edição da Lei do Ventre Livre (1871), da Lei dos Sexagenários (1885) e da Lei Áurea (1888) afastaram a autorização legal para a escravidão, mas não foram acompanhadas de medidas e políticas indispensáveis à compensação do quadro que perdurou por mais de três séculos, de modo que causas estruturais atinentes à pobreza e à concentração da propriedade das terras contribuíram para a continuidade da prática.
Como resultado do reconhecimento estatal da persistência da escravidão no território nacional, em 1995 houve a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Análogo à Escravidão (GEFM), que viabilizou o resgate de mais de 55 mil trabalhadores até o ano de 2020. O GEFM constitui-se por equipes formadas exclusivamente por Auditores-Fiscais do Trabalho (AFT), as quais possuem um coordenador e um subcoordenador, com dedicação exclusiva, além de outros integrantes convocados a cada operativo, que definem em conjunto os atos necessários à regularização e/ou à identificação do trabalho análogo ao de escravo e o correspondente resgate.
Instituição essencial ao combate ao trabalho escravo contemporâneo, a Auditoria Fiscal do Trabalho possui previsão constitucional (artigo 21, inciso XXVI), supralegal (Convenção 81 da OIT) e legal (artigo 628 da CLT), e tem por fim o exercício do poder de polícia em prol da defesa dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. Com o objetivo de estabelecer a padronização dos procedimentos para a atuação da Auditoria Fiscal do Trabalho no tocante à erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo, a SIT editou a Instrução Normativa 139 em 22 de janeiro de 2018, que promove a reunião de indicadores não exaustivos que auxiliam na apuração e análise qualitativa das violações multifatoriais para a identificação de trabalho em condição análoga às de escravo, em cada uma das modalidades destacadas.
As consequências da pandemia de COVID-19 reforçaram a necessidade de atuação das equipes de fiscalização contra a escravidão laboral, não obstante o contexto de agravamento das dificuldades operacionais associadas à gradativa redução dos quadros sem a correspondente reposição e às deficiências estruturais experimentadas pelos membros da Auditoria Fiscal do Trabalho.
Quanto ao combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil em tempos da pandemia, considerando-se como parâmetro as fiscalizações iniciadas e encerradas no Brasil entre os meses de janeiro a agosto de cada ano, entre 2003 (quando ocorreu a atualização normativa do tipo penal) e 2020, para que a comparação seja fidedigna, atual e consolidada, a análise de dados estatísticos da Inspeção do Trabalho nos permite entender como a pandemia acelerou o processo de agravamento e precarização em matéria de combate ao labor em condições análogas às de escravo. As informações são registradas e armazenadas no banco de dados utilizado como parâmetro pelo Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Com base nas informações fornecidas pela Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE, órgão vinculado à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT, da Secretaria do Trabalho, quanto às operações realizadas no Brasil, algumas conclusões são possíveis. A primeira delas envolve a variação do quantitativo de AFT em relação à estimativa de população do Brasil entre 1995 e 2019. O crescimento da população não se fez acompanhar da manutenção ou do aumento, mas da redução do quantitativo de fiscais em atividade, indicador que pode prejudicar o combate à escravidão contemporânea. Enquanto em 1996 havia um auditor para cada 46,5 mil pessoas, em 2019 esse mesmo inspetor deveria cobrir o total de 97,4 mil pessoas.
Além da redução dos quadros de fiscalização, a restrição orçamentária dos recursos destinados às ações do GEFM, observada sobretudo a partir de 2012, desponta como elemento adicional que prejudica estruturalmente o desempenho da missão de combate ao trabalho escravo contemporâneo, tanto no viés repressivo, para identificação e resgate em si, como sob o prisma preventivo, com a finalidade de investigação, acompanhamento e formalização das relações laborais em segmentos, atividades e cadeias produtivas. Em 2019, os recursos disponibilizados, sem considerar a atualização monetária, está nos níveis de 2005.
A quantidade de fiscalizações realizadas nos oito primeiros meses de 2020 apresentou o menor patamar (59) da série histórica na comparação com o mesmo período dos anos anteriores, representando 36,0% da média anual de 164 estabelecimentos fiscalizados, para os meses considerados, o que revela o descompasso entre o investimento na repressão estatal e a gravidade dos impactos da pandemia nas relações laborais. Em termos absolutos, constatou-se que 250 trabalhadores estavam submetidos a condições análogas de escravo, em 25 fiscalizações realizadas nos oito primeiros meses de 2020, enquanto o segundo menor número corresponde a 340 pessoas nas 47 ações fiscais promovidas em 2017, no mesmo período. A conclusão a respeito da diminuição trabalho escravo no país, todavia, não é possível. Há outros fatores a serem considerados, a exemplo da redução significativa dos procedimentos fiscais, do encolhimento dos quadros de fiscalização e das medidas de restrição e cuidado quanto à exposição das equipes à infecção por COVID-19.
Se analisada a quantidade de autos de infração lavrados em tais fiscalizações ao longo da série histórica, identificou-se em 2020 o menor patamar, com a lavratura de 533 autos de infração, apenas 26% da média observada no período em exame e 52,4% do quantitativo de 2003, que antes correspondia ao número mais reduzido. Assim, percebe-se o impacto negativo da pandemia no aspecto da identificação e responsabilização administrativa quanto às irregularidades trabalhistas.
No tocante à distribuição geográfica das localidades de identificação de trabalhadores escravizados, dos cinco estados mais representativos no período de 1995 a 2019, quatro encontram-se na Amazônia Legal e somam 46% de todas as fiscalizações registradas, percentual incompatível com a lotação de somente 7% na Região Norte. A distribuição do quadro de pessoal contribui para o déficit de fiscalização observado em 2020, na medida em que apenas 15,3% dos estabelecimentos fiscalizados encontravam-se na Amazônia Legal. Tais fatores reforçam a necessidade de maior atenção estatal e enfoque nos estados localizados em áreas de abertura de fronteira agrícola e de desmatamento na Amazônia Legal, no tocante à proteção aos trabalhadores explorados em condição de escravidão. Há tendência de queda no quadro de fiscalização desde 2013. Não obstante a média de um concurso a cada 2,5 anos entre 2003 e 2013, desde então não ocorreram certames para incremento dos quadros.
Com efeito, é importante destacar que a efetividade das políticas públicas de combate à escravidão carece da aplicação do artigo 243 da Constituição de 1988, relativo ao confisco de propriedades em que forem flagradas situações de trabalho escravo. Considerando que em 80% dos resgates em meio urbano a condição degradante consistiu no único ou algum dos motivos para o resgate, assim como em 97,8% do rural, resta inviável o discurso em defesa da redução conceitual do trabalho escravo que afaste as condições degradantes e a jornada exaustiva das possibilidades de condutas configuradoras de trabalho escravo para esse fim.
Pelo quadro exposto, nota-se que a pandemia de COVID-19 apenas agravou a tendência de precarização no combate à escravidão contemporânea observada nos últimos anos. A redução nos quantitativos de trabalhadores encontrados pela fiscalização do trabalho em condições análogas às de escravo seria objeto de comemoração, não fossem os variados fatores que concorrem e prejudicam o satisfatório desempenho da missão estatal de eliminar a prática do território nacional até 2030, conforme previsto no item 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.
Se os quadros da Auditoria Fiscal do Trabalho encontram-se cada vez mais enxutos, sem que existam indicativos estatais concretos no sentido da reposição das aposentadorias e vacâncias, também prejudicam o alcance dessa meta a estrutura e recursos pouco expressivos destinados às ações de fiscalização, bem como a ausência de enfrentamento adequado das questões que alimentam a desigualdade estrutural destacada na sentença do caso da Fazenda Brasil Verde e intensificada no contexto pandêmico.
Revelou-se a acentuação do quadro de precarização laboral, diante da incompatível redução no enfrentamento à escravidão contemporânea. A tendência de queda na quantidade de ações e resgates pode ser explicada por fatores relacionados a dificuldades operacionais e estruturais, que impedem a afirmação no sentido da redução da escravidão moderna no mesmo ritmo, correlação que demanda a realização de certames públicos para a reposição dos quadros e melhoria na política de enfrentamento. A exploração do trabalho em condições análogas à escravidão resta facilitada pela ausência de estratégias de preenchimento dos quadros e distribuição adequada do quantitativo de AFT, notadamente nos estados da Amazônia Legal, ações estatais julgadas fundamentais para que haja o fortalecimento das equipes regionais, de forma a potencializar a fiscalização laboral nos locais que concentram situações de aviltamento da dignidade obreira.
Dentro do cenário de restrição e dificuldade de atuação, ressalta-se a importância das ações promovidas pela Inspeção do Trabalho na seara da eliminação da escravidão contemporânea e a existência de espaço para evolução no desenvolvimento dessa política, por meio de ações públicas e privadas coerentes com o dever do Estado brasileiro quanto ao tratamento das questões sociais que condicionam uma grande parcela da população a um quadro de discriminação estrutural facilitador do aviltamento da dignidade obreira.
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Valena Jacob Chaves Mesquita
Doutora em Direito pela UFPA. Advogada. Professora e Diretora Geral do ICJ/UFPA. Docente da Escola Judicial da ABRAT. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Novas formas de trabalho, velhas práticas escravistas”. Pesquisadora dos seguintes Grupos de Pesquisa: “Biodiversidade, Sociedade e Território na Amazônia – BEST Amazônia”, “Trabalho Escravo Contemporâneo” e “Direito do Trabalho e os Dilemas da Sociedade Contemporânea”.
Emerson Victor Hugo Costa de Sá
Doutorando em Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Auditor Fiscal do Trabalho. Desenvolve atividades de pesquisa nos Grupos de Pesquisa “Direitos Humanos na Amazônia” (UEA), “Novas formas de trabalho, velhas práticas escravistas” (UFPA) e “Pesquisa Contemporaneidade e Trabalho” (UFPA).