No início do ano passado, logo depois que fomos todos surpreendidos com a declaração pela OMS da existência de uma pandemia e tivemos que enfrentar a chegada do Coronavírus ao Brasil, o Congresso Nacional apreciou a Medida Provisória 936, proposta pelo Poder Executivo, convertendo-a na lei 14.020/20 e criando o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Esse foi o fundamento jurídico para a celebração de acordos de suspensão dos contratos de trabalho, bem como de redução de salários e de jornada, com o pagamento pelo Governo do benefício emergencial (BEm) aos trabalhadores afetados.
Embora tenha sido contestado até perante o STF (em razão da possibilidade de acordos individuais, com o afastamento dos sindicatos na sua negociação), o programa então instituído acabou sendo validado pela maioria dos ministros do Supremo.
Segundo dados oficiais do Ministério da Economia, foram então celebrados mais de 20 milhões de acordos para suspensão de contratos de trabalho ou redução proporcional de salários e jornada, envolvendo quase 10 milhões de trabalhadores e cerca de 1,5 milhão de empregadores até o final de 2020, quando o programa se encerrou.
Mas infelizmente a pandemia não acabou: ao contrário, em 2021 houve até uma aceleração do número de contagiados, resultando no brutal crescimento do número de vítimas fatais, para tristeza de milhares de famílias brasileiras.
Sendo assim, em abril o Poder Executivo encaminhou ao Congresso a Medida Provisória 1045, com o objetivo de instituir o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispor sobre medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pela Covid-19 no âmbito das relações de trabalho.
Buscou-se desse modo restabelecer os fundamentos jurídicos para o enfrentamento da grave situação, usando novamente os mesmos remédios adotados no primeiro ano da pandemia.
Ocorre que a Câmara dos Deputados foi muito além do que previa o texto original da Medida Provisória 1045 ao aprovar, em agosto, o seu projeto de conversão: os parlamentares resolveram acolher propostas inovadoras do relator (Deputado Federal Christino Áureo) e instituir também o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (PRIORE), o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (REQUIP) e o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário. De quebra, decidiram até regular a questão do acesso do cidadão à Justiça, alterando também leis processuais e estabelecendo novas condições para o benefício da gratuidade da justiça.
Também foram propostas alterações na redação de dispositivos da CLT e a revogação de algumas normas, no que já vem sendo chamado de uma nova minirreforma trabalhista.
No entanto, é necessário observar que o STF já estabeleceu, no julgamento da ADIn 5127, que viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (artigos 1º, “caput”, parágrafo único; 2º, “caput”, 5º, “caput” e inciso LIV), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.
Com efeito, a inserção de temas estranhos ao projeto original configura uma espécie de “contrabando legislativo”, razão pela qual o STF reconheceu a ilegitimidade constitucional do oferecimento de emendas parlamentares que não guardam relação de pertinência temática, ou de congruência material ou, ainda, de afinidade lógica com o conteúdo normativo de medidas provisórias submetidas ao exame do Congresso Nacional. Essas emendas são o que popularmente ficaram conhecidas como os “jabutis”.
A Ministra Rosa Weber afirmou em seu voto no julgamento da ADIn 5127: “O que tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha a medida provisória submetida à conversão, não denota, a meu juízo, mera inobservância de formalidade, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade”.
Já o Ministro Edson Fachin observou o seguinte: “Se a Medida Provisória é espécie normativa de competência exclusiva do Presidente da República e excepcional, pois sujeita às exigências de relevância e urgência – critérios esses de juízo político prévio do Presidente da República -, não é possível tratar de temas diversos daqueles fixados como relevantes e urgentes. Uma vez estabelecido o tema relevante e urgente, toda e qualquer emenda parlamentar em projeto de conversão de Medida Provisória em lei se limita e circunscreve ao tema definido como urgente e relevante. Vale dizer, é evidente que é possível emenda parlamentar ao projeto de conversão, desde que se observe a devida pertinência lógico-temática”.
Ora, o tema relevante e urgente trazido na MP 1045 é o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) no âmbito das relações de trabalho, pela recriação do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda que vigorou até dezembro do ano passado. Tratar de outros temas significa desrespeitar uma decisão judicial que, em última e definitiva instância, visa defender a própria harmonia entre os poderes da República, conforme o art. 2º da Constituição: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
O deputado Marcelo Ramos, primeiro vice-presidente da Câmara dos Deputados, quando alertado para esses problemas na sessão que presidia para apreciação da MP 1045 (e que, diga-se, aconteceu no mesmo dia da votação da PEC do voto impresso), saiu-se com a alegação de que seria admissível uma “pertinência temática flexível”.
Trata-se de tese que contém evidente vulnerabilidade e trará enorme insegurança jurídica para a nova legislação, caso venha a ser aprovada pelo Senado a despeito da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal.
Diante disso, espera-se que os senadores, no exercício de sua atribuição, analisem com responsabilidade e cautela a proposta de conversão de medida provisória encaminhada pelos deputados, para evitar que a aprovação de uma nova minirreforma trabalhista elaborada às pressas possa gerar mais dúvidas e incertezas no já conturbado cenário nacional.
Fonte: www.migalhas.com.br