Os jabutis desceram da árvore!

“Jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente ou foi mão de gente”
(Deputado Ulisses Guimarães)

Na histórica sessão do Senado do dia 1º de setembro de 2021 foi apreciado o projeto de conversão em lei da MP 1045, que originalmente tinha o objetivo de instituir o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispor sobre medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional, decorrente do coronavírus responsável pela covid-19, no âmbito das relações de trabalho.

A iniciativa da Presidência da República buscava restabelecer os mesmos remédios adotados no primeiro ano da pandemia e que constaram da lei 14.020/20: acordos de redução de salários (e correspondente redução de jornada), ou de suspensão de contrato de trabalho, em ambos os casos com o pagamento pelo Governo do benefício emergencial (BEm) aos trabalhadores.

Ocorre que a Câmara dos Deputados foi muito além do que previa o texto original da MP ao aprovar, em agosto, o seu projeto de conversão: os parlamentares acolheram propostas inovadoras do relator (deputado Federal Christino Áureo) e instituíram também o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (PRIORE), o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (REQUIP) e o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.

Decidiram até regular a questão do acesso do cidadão à Justiça, reformando leis processuais a fim de estabelecer novas condições para o benefício da gratuidade da justiça, além de diversas alterações na redação de dispositivos da CLT e a revogação de algumas normas (uma verdadeira minirreforma trabalhista).

No entanto, a maioria do Senado resolveu rejeitar o projeto de conversão da MP 1045 oriundo da Câmara dos Deputados, pelo expressivo placar de 47 votos contrários contra 27 favoráveis.

Os debates ocorridos na sessão deixaram evidente a existência de uma separação de atribuições entre as duas casas legislativas: como bem ensina o professor Dalmo de Abreu Dallari em sua clássica obra “Elementos de Teoria Geral do Estado”, o poder político é compartilhado pela União e pelas unidades federadas e, para assegurar a participação dos Estados no governo federal, foi constituído o poder legislativo bicameral. O Senado é o órgão de representação dos Estados, assegurando-se a todas as unidades federadas igual número de representantes, enquanto na outra casa do poder legislativo é o próprio povo quem se faz representar.

Logo no início da sessão do dia 1º de setembro, o senador Paulo Paim, representante do Rio Grande do Sul, apresentou questão de ordem muito bem fundamentada, requerendo que a mesa do Senado declarasse como “não escritas” as propostas oriundas da Câmara dos Deputados e que tinham sido acrescentadas ao texto original da MP enviada pelo presidente da República.    

O requerimento do senador Paim se baseou em decisão do STF que, no julgamento da ADI 5127, estabeleceu claramente a tese de que viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo, a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.

Com efeito, a inserção de temas estranhos ao projeto original configura uma espécie de “contrabando legislativo”, razão pela qual o STF reconheceu a ilegitimidade constitucional do oferecimento de emendas parlamentares que não guardam relação de pertinência temática, ou de congruência material ou, ainda, de afinidade lógica com o conteúdo normativo de medidas provisórias submetidas ao exame do Congresso Nacional.

Essas emendas são o que popularmente ficaram conhecidas como os “jabutis”, de modo que a questão de ordem posta em debate visava, justamente, a sua eliminação do texto que seria apreciado pela casa revisora no sistema bicameral.

Era uma questão realmente determinante, pois se fosse acolhida ditaria o rumo da votação: o Senado apenas examinaria o texto original da MP 1045, apreciando o tema “relevante e urgente” do enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) no âmbito das relações de trabalho, pela recriação do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda que vigorou até dezembro do ano passado.

Inúmeros senadores e senadoras se manifestaram na sequência, ficando muito claro o incômodo causado no Senado pelo “inchaço” do projeto de lei de conversão da MP aprovado pelos deputados.

Diga-se que o relator designado para examinar o projeto no Senado, o senador Confúcio Moura, do Estado de Rondônia, reconheceu em parte a existência de “jabutis”, escoimando do texto as referências às alterações legais na CLT e em normas processuais. Mas em sua proposta ele mantinha os três programas criados pela Câmara: PRIORE, REQUIP e o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.

Isso gerava um problema: se os senadores e as senadoras aprovassem o parecer do relator, a MP precisaria ser devolvida para a Câmara dos Deputados, que poderia derrubar o texto do Senado e restabelecer o seu.

Um impasse!

O líder do governo (senador Fernando Bezerra, de Pernambuco) anunciou um acordo, que teria sido articulado com a direção da Câmara dos Deputados, em torno da proposta do relator: se o Senado aprovasse, seria respeitada integralmente a decisão.

Os discursos que se seguiram, no entanto, mostraram uma grande desconfiança de que esse acordo efetivamente seria cumprido, na hipótese de devolução da MP para nova apreciação da Câmara, pois precedentes em outras proposições legislativas mostravam que não dava para ter qualquer segurança sobre o futuro comportamento dos deputados e das deputadas.

O senador Oriovisto Guimarães, do Paraná, fez então discurso contundente contra a MP, sendo seguido por vários outros colegas, sempre na mesma linha. O senador Alessandro Vieira, de Sergipe, falou em necessidade de respeito ao devido processo legislativo!

O senador Cid Gomes, do Ceará, foi logo anunciando que seu partido, o PDT, votaria contra a MP, no que foi secundado pelo senador Eduardo Braga, do Amazonas, também manifestando o incômodo do MDB em aceitar os “jabutis”.

Pelo Estado de São Paulo, manifestaram-se o senador José Anibal (dizendo-se favorável ao Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, mas contrário ao voto do relator que mantinha os outros programas) e a senadora Mara Gabrilli (apontando os danos que o projeto causaria para as pessoas com deficiência).  

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, rejeitou monocraticamente a questão de ordem, alegando que o projeto do senador Confúcio Moura já tinha retirado os “jabutis” do texto: nesse raciocínio, seguiu a mesma linha adotada pelo deputado Marcelo Ramos, primeiro vice-presidente da Câmara dos Deputados, que quando foi alertado para esses problemas na sessão que presidiu em agosto (no mesmo dia da votação da PEC do voto impresso), saiu-se com a alegação de que seria admissível uma “pertinência temática flexível”.

Diante dessa decisão, cabia ao plenário do Senado votar o relatório, aprovando-o ou rejeitando-o. Se aprovado, teria que ser devolvido para a Câmara, que em tese poderia restaurar o texto anterior…

Viu-se então que a maioria dos parlamentares não concordaria com a aprovação. Com o processo de votação já iniciado, o líder do governo tentou uma última cartada: concordava em retirar o REQUIP do texto, ficando apenas os demais programas. Mas já era tarde: a manobra foi rejeitada pois desrespeitava o regimento, como bem observou, com veemência, o senador Fabiano Contarato, do Espírito Santo.

Encerrada a votação, o painel eletrônico mostrou 47 votos contrários à MP, o que resultou no arquivamento da proposta e o término da discussão na casa, sem a possibilidade de revisão.

Um dia importante para a história do Congresso Nacional, pois no fim das contas ficou claro que, como já havia dito o ministro Edson Fachin no julgamento da ADI 5127 no STF, “se a medida provisória é espécie normativa de competência exclusiva do presidente da República e excepcional, pois sujeita às exigências de relevância e urgência – critérios esses de juízo político prévio do presidente da República -, não é possível tratar de temas diversos daqueles fixados como relevantes e urgentes. Uma vez estabelecido o tema relevante e urgente, toda e qualquer emenda parlamentar em projeto de conversão de Medida Provisória em lei se limita e circunscreve ao tema definido como urgente e relevante. Vale dizer, é evidente que é possível emenda parlamentar ao projeto de conversão, desde que se observe a devida pertinência lógico-temática”.

O plenário do Senado alinhou-se ao Supremo e firmou entendimento de que tratar de temas estranhos à proposta original de uma medida provisória significaria desrespeitar o processo legislativo. Afinal, a decisão do STF sobre o tema, em última e definitiva instância, visa defender a própria harmonia entre os poderes da República, conforme o art. 2º da Constituição: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Registre-se, para finalizar, o agradecimento da ABRAT e das associações estaduais da advocacia trabalhista aos senadores e às senadoras que ouviram nossos apelos, rejeitando a aprovação de uma nova minirreforma trabalhista que já nasceria eivada de inconstitucionalidade por vício no processo legislativo.

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Fonte: www.migalhas.com.br