A Justiça do Trabalho vem se deparando com um número crescente demandas provindas da nova realidade das famílias – que hoje podem ser compostas por filhos gerados ou adotados por duas mulheres, dois homens ou apenas um homem ou uma mulher. A legalidade da união homoafetiva foi reconhecida pelo STF em 2011. Entre os principais temas está a questão da licença maternidade. Casais de mulheres lutam para que as duas possam usufruir do benefício. O mesmo acontece com parceiros do sexo masculino, ou famílias com pais e mães solteiros. Nesse caso, o conceito de maternidade, para os fins da mencionada licença, deixa de estar estritamente relacionada ao sexo feminino, ou a uma só pessoa do casal.
Em entrevista especial concedida ao Núcleo de Comunicação do TRT da 10ª Região, o desembargador Pedro Foltran, vice-presidente da Corte, disse que nesses casos, o que deve prevalecer, sempre, é a garantia dos direitos fundamentais da criança, prevista na Constituição Fedral . O desembargador diz entender que o Brasil ainda precisa avançar muito em termos de legislação sobre os direitos das mães, principalmente em função dessas novas conformações das famílias. E que, diante da ausência de leis específicas sobre a licença maternidade, a justiça acaba tendo que construir novas jurisprudências a partir das demandas que chegam ao judiciário.
Confira a entrevista:
A legislação brasileira atual tem soluções para esses desafios? Consegue alcançar todas estas situações?
PF: Não tem. A evolução dessas questões está tão rápida que a legislação não tem condições de acompanhar. Ao analisar os casos concretos, a jurisprudência vai se consolidando. Em se tratando do direito à gestante e seus desdobramentos, a jurisprudência trabalhista tem se pautado em proteger o nascituro. A visão da justiça é proteger a criança. Sempre assim. Então, quando estamos discutindo quem tem direito à licença maternidade, ajustamos a jurisprudência para garantir à criança a presença da mãe, uma assistência direta, constante, com estabilidade no emprego e o que é mais importante, com estabilidade emocional.
Então não importa se é um homem ou uma mulher que vai cuidar daquela criança, mas que aquela criança precisa ser cuidada…
PF: Eu penso assim. Hoje eu diria que a jurisprudência é até muito radical. Para ter uma ideia, se uma mulher ficar grávida no final do curso de um aviso prévio indenizado, tem direito de voltar ao trabalho, com a garantia do pagamento dos salários do período do afastamento. O que vale para a Justiça é a data em que ocorreu a concepção. Mesmo que não esteja configurada a hipótese de dispensa obstativa, o empregador deve reintegrar a empregada no serviço, mesmo que ela não estivesse grávida na data da dispensa. Basta que a gravidez se consolide no curso do aviso prévio, mesmo indenizado. Então, mesmo nesses casso extremos, a justiça tem determinado o pagamento do auxílio maternidade e garantido a estabilidade da gestante, com o pagamento dos nove meses da gestação e mais a estabilidade por cinco meses após o parto. Tem sido isso. Então, sempre que você fala que o empregador não sabia, não interessa. Ficou grávida, a concepção garante à gestante e à mãe a licença maternidade e sua estabilidade no emprego, aconteça quando acontecer.
Em um caso extremo, de uma empregada que pediu demissão, o TST reconheceu a estabilidade, dizendo que ela não poderia renunciar ao direito à estabilidade, que a estabilidade era uma garantia de assistência ao seu filho e ela não poderia renunciar a assistência ao próprio filho.
Então, quando se pergunta como está a legislação, como está a jurisprudência, eu digo que a jurisprudência caminha nesse sentido. O objetivo é a proteção da criança. Esse é o caminho.
Eu sou juiz desde 1989. A minha primeira decisão foi garantir a estabilidade gestacional de uma mãe adotiva. Uma mulher havia adotado uma criança e lhe foi garantido o direito à licença gestante. Ela não geriu, mas o direito foi reconhecido. Era um indicativo de que realmente nossa preocupação deveria ser com o direito do nascituro.
Não seria a hora de se criar novas leis, consentâneas com essa nova realidade?
PF: Estamos avançando. mas não me parece possível que a legislação possa acompanhar com tanta rapidez as mudanças, mesmo porque não nos seria possível delinear todas as situações possíveis. No mais das vezes a legislação vem sedimentar situações já vivenciadas nos tribunais. As leis são muitos importantes, até para desafogar o judiciário, para não termos decisões conflitantes. Mas era importante que realmente o legislador ficasse atento a essas mudanças históricas para que pudesse avançar na legislação, para garantir esses direitos também.
Parece que mais uma vez o Judiciário saiu na frente do Legislativo e do Executivo, decidindo e criando as regras (por meio de precedentes e jurisprudência) para situações novas ainda não contempladas por legislação… É isso?
PF: Isso sempre acontece, é comum. E não é nenhuma crítica ao Legislativo. O Judiciário vive o momento, precisa decidir rápido. A confecção de uma lei é muito mais burocrática, o processo legislativo é mais complicado. O juiz não. O fato acontece hoje, a ação é proposta, e ele tem que julgar o processo. E ele não pode se eximir de julgar. E aí vai construindo a jurisprudência. E existem muitas leis em vigor hoje que nasceram da jurisprudência dos nossos tribunais. E isso é uma realidade.
E eu digo que essa construção é do juiz de primeiro grau, não é de tribunal regional ou de tribunal superior.
Além disso, é muito difícil você prever todos esses desdobramentos. É tudo muito rápido e tudo muito novo também.
O que o magistrado deve levar em conta para decidir casos semelhantes?
PF: A base legal é a Constituição, que garante os direitos da criança. É sempre assim. Uma situação de mãe adotiva, ou de casal homoafetivo. Como funciona? Quem tem direito à licença maternidade? A mãe? E se são duas mães, duas mulheres? Ou se são dois pais? Quem vai cuidar dessa criança?
Há situações, inclusive, de gozo de licença maternidade pelo pai quando a mãe morre no parto. A criança fica desamparada. Há o reconhecimento de direto à licença maternidade para o pai, com o falecimento da mãe durante o trabalho de parto. É uma confirmação do que eu disse: o direito da criança sempre em primeiro lugar.
O conceito de mãe está mudando?
PF: Não diria o conceito de mãe. Mas as atribuições estão misturadas agora. Isso já vem sendo sedimentado ao longo do tempo. Hoje não é mais aquela história da mãe ficar em casa, cuidando da família. Isso tem mudado bastante. Evidentemente que o pai não vai conseguir substituir a mãe de forma alguma. Isso é da própria natureza: a própria amamentação pode ficar comprometida. O pai não vai suprir, por mais que ele seja presente, por mais que ele seja carinhoso com seus filhos, ele não vai suprir a figura da mãe. Mas o compartilhamento é evidente. Agora, o importante é saber também que a mãe tem que assumir esse papel de mãe, de amamentar, de cuidar de seu filho, de curtir seu filho. Esse momento é único.
Então, a licença maternidade depende do papel, independente do sexo da pessoa que vai desempenhar aquele papel. Pode haver uma inversão de beneficiado…
PF: A licença maternidade quer garantir a presença da mãe junto do seu filho nos primeiros meses de vida. Evidente que ela tem que ficar com a mãe, principalmente por conta da amamentação, porque isso é o primordial. Ela tem que estar ali para amamentar seu filho, que vai definir a saúde da criança para o resto da vida. Ela precisa do calor da mãe, do seu exemplo, da educação. Então não se pode simplesmente deferir a licença maternidade para o pai porque a mãe tem que trabalhar e o pai ficar com a criança. Não é essa situação. Não é bem assim.
Mas o pai cuja mulher faleceu, ele não amamentou…
PF: Mas aí é uma situação extrema. Se você não garante esse direito ao pai, você não vai garantir o direito a ninguém. A criança vai ficar com quem? Vai ficar totalmente desamparada? Vai para uma creche? Ela já não vai poder ser amamentada, porque a mãe morreu. E o pai, não vai nem poder ficar com ela, também? Então, nesse caso, a justiça teve uma visão de garantir, pelo menos, a presença do pai. É uma situação diferente.
Mas não se pode inverter os papeis simplesmente por conta de circunstâncias individuais, pessoais, de trabalho – a mulher não vai amamentar, então ele goza a licença, ele cuida da criança. Não.
E se dois homens adotam um recém nascido? Por que não deferir a licença para que um deles possa ficar com a criança para que ela não fique totalmente desamparada. Garantir a presença de um dos pais que adotaram me parece razoável para que possa cuidar da criança. Estamos falando de calor humano, afinal, quem adota é porque ama muito e esse amor será essencial para o desenvolvimento do bebê.
Repito: o mais importante de tudo é preservar a família. Isso é que é importante. Preservar a união familiar. Senão as coisas ficam muito mecânicas. Acho até que 120 dias de licença é muito pouco. A criança ainda está muito desprotegida.
Pais de casais heteroafetivos podem vir a reivindicar direito à licença maternidade, sob a alegação de que na atualidade pais e mães dividem quase que igualitariamente (respeitadas as particularidades) as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos. Seria o fim da licença paternidade e o surgimento de uma licença natalidade – sem distinção de gênero, beneficiando ao casal, independente do sexo?
PF: Não acho que vá acabar com a licença maternidade. Acho que se os pais forem do mesmo sexo, temos que garantir que pelo menos um deles cuide da criança nos primeiros meses de vida, principalmente nos casos de adoção que, no mais das vezes, envolve crianças desamparadas ou abandonadas em abrigos. Elas precisam de muito calor humano. Você não precisa acabar com uma licença ou outra, independentemente do sexo, seja um casal de homens, seja um casal de mulheres, desde que você garanta ao filho a presença de um deles na casa.
No caso da mulher, mesmo que sejam duas mulheres – e hoje existe a inseminação artificial, então podem não ser filhos adotivos, ela realmente gera uma criança, eu não teria nenhuma dificuldade de deferir uma licença maternidade numa situação dessas. E no caso de dois homens, de eles adotarem uma criança pequena, de garantir que pelo menos um deles cuide.
Talvez possa mudar o nome. Não seria maternidade, seria uma licença natalidade mesmo, ou uma licença paternidade estendida, para garantir os mesmos efeitos da licença maternidade como ela é hoje. Mas não acho que seja o caso de acabar, mas dar essa interpretação.
Sob o prisma do direito comparado, no concerto mundial podemos dizer que o Brasil está na vanguarda em termos de garantias de direitos para os homossexuais no que toca à maternidade?
PF: Acredito que o Brasil tem muito a caminhar em termos de legislação. O Brasil é um país muito conservador, mas tenho certeza de que estamos no caminho certo. A legislação trabalhista tem avançado muito nos últimos anos.