Ela contou que, após ter ficado órfã, com 7 ou 8 anos de idade, foi encaminhada para a residência de um senhor chamado Raimundo e começou a trabalhar como doméstica para a família dele. Depois de ficar viúvo, esse senhor a manteve como sua empregada, inclusive depois de se casar com outra pessoa. Ela disse ainda que ficava em tempo integral à disposição da família, mesmo depois do falecimento do Sr. Raimundo, continuando o trabalho para a viúva até ela falecer, em 2013. Mas, apesar de ter sido empregada doméstica da família por tantos anos, com todos os requisitos do vínculo empregatício, nunca recebeu salários e jamais teve os seus direitos trabalhistas reconhecidos, lamentou a reclamante. E, com esses argumentos, ajuizou ação trabalhista contra o espólio da viúva, requerendo o reconhecimento do vínculo de emprego de natureza doméstica a partir da morte do ex-patrão e pedindo horas extras, indenização por danos morais, além de outras parcelas trabalhistas, no montante total de R$385.847,01.
Mas, ao analisar os detalhes do caso, principalmente a prova testemunhal, o juiz Newton Gomes Godinho, na titularidade da 2ª Vara do Trabalho de João Monlevade/MG, se deparou com uma realidade bem diferente da que salta dos relatos da reclamante. Ele concluiu que o vínculo entre ela e a família não era de trabalho, mas sim, afetivo. Por isso, não reconheceu a relação de emprego e julgou improcedentes todos pedidos feitos na ação.
Ao se defender, o espólio negou, enfaticamente, a condição de empregada doméstica da reclamante. Alegou que ela foi criada como filha pela falecida, nunca recebeu salários e o vínculo que teve com a família foi apenas afetivo. Inclusive, sempre tiveram empregadas domésticas na residência e consideraram inacreditável que a reclamante tivesse trabalhado por quase 62 anos sem receber qualquer salário.
Para o juiz, foi isso o que, de fato, brotou do conjunto da prova, pois as declarações das testemunhas revelaram que a reclamante não atuava como empregada, mas, na realidade, tinha total liberdade de ação e laços de pura afeição para com a família com a qual passou a viver. A própria reclamante, em depoimento pessoal, reconheceu a liberdade que possuía na casa. Ela disse que movimentava valores na conta bancária da falecida, pois retirava dinheiro para custear despesas da falecida, como compra de remédios e pagamento de consultas. Também cuidava das despesas gerais da casa, pagando contas de água, luz, telefone e alimentação, inclusive retirando do próprio bolso (da aposentadoria), se fosse necessário. Além disso, era a reclamante quem pagava as pessoas que trabalhavam na casa, usando o dinheiro retirado da conta da falecida, ou o dela próprio. Ou seja, não era empregada doméstica, mas era tida como um membro da família.
Na visão do magistrado, esses laços familiares se revelaram também no depoimento da testemunha da própria autora, que acabou por declarar que a reclamante tinha cuidado especial com a falecida, chegando a “deixar de cuidar dela própria para cuidar da falecida”. Ou seja, ela não era empregada doméstica, mas se comportava e era tida como um membro da família.
Nesse mesmo sentido foram as declarações da testemunha do réu, que afirmou perceber uma relação de amor entre a reclamante e a falecida. Essa testemunha, inclusive, já tinha trabalhado como doméstica na residência e disse que fazia de tudo na casa, tendo sido contratada pela própria reclamante, a quem tinha como patroa, pois era quem acertava seus salários e comandava o serviço. Segundo ela, “como uma dona de casa, a reclamante ajudava em algumas coisas”.
Diante desse quadro, o magistrado não teve dúvidas de que o vínculo entre as partes era de natureza nitidamente afetiva, sem quaisquer dos traços que marcam a relação de emprego. “É o que sentiu o Juiz. Sentença, aliás, vem de ‘sentire’ e, quando a profere, o Juiz diz o que sente”, destacou. Por essas razões, não reconheceu a relação de emprego, julgando improcedente o pedido. A reclamante apresentou recurso ordinário, mas a decisão foi mantida pela Primeira Turma do TRT/MG.
Fonte: TRT 3