Comemoramos, no mesmo dia em que ocorrerão as eleições municipais, 131 anos de nossa transformação em República, dia 15 de novembro de 1889, quando formalmente abandonamos a Monarquia para um sistema pelo qual deveria haver o sentido de “res publica”, expressão em latim significando “coisa pública”, patrimônio de todos, bem coletivo, em contraposição à submissão aos anseios da família real e ao sentido de bens da Coroa, modelo até então vigente.

Comemoramos, no mesmo dia em que ocorrerão as eleições municipais, 131 anos de nossa transformação em República, dia 15 de novembro de 1889, quando formalmente abandonamos a Monarquia para um sistema pelo qual deveria haver o sentido de “res publica”, expressão em latim significando “coisa pública”, patrimônio de todos, bem coletivo, em contraposição à submissão aos anseios da família real e ao sentido de bens da Coroa, modelo até então vigente.

Lamentavelmente, nossa República apenas proporcionou a continuidade de uma farsa em que nossa elite dominante mantivesse o poder sobre os destinos dessa terra, cuja população ainda almeja respirar os verdadeiros ares de uma Nação1.

De “coisa pública”, alma de uma República, pouco tivemos e pouco temos diante um patrimonialismo que nos domina e retém o poder nestes 5 séculos desde o descobrimento, passando pela independência de Portugal, pelo fim da monarquia, e seguindo até os dias atuais.

E esse distanciamento de uma verdadeira Nação bem se reflete nas relações de trabalho e sua regulação governamental nestes 131 anos do que deveria ser República, situação afastada das bases civilizatórias de uma sociedade capitalista que deveria se sustentar em princípios do trabalho digno e do respeito ao ser humano em primeiro lugar.

Muito diferente disso, o Brasil dessa quase-República trilhou sua história adaptando as formas de exploração sem romper com os caminhos do colonialismo explorador, trocando a escravidão por uma servidão com marginalização, e evitando um sentido de Nação, uma sociedade minimamente sustentável e estruturada para o bem comum, pela coisa pública.

Nosso Estado ainda é refém de um patrimonialismo2 sistêmico, onde a elite se utiliza de uma dita “economia”, da ideia de um “Mercado” impessoal e austero para o 1%3, para se sobrepor a qualquer vontade coletiva, democracia efetiva e, até mesmo, de qualquer senso que possa dar sentido à civilização enquanto evolução da humanidade.

Se percebemos, de uma lado, que houve um salto na década de 1930, após 4 décadas da proclamação e da política agrária do café com leite, com o advento de uma legislação trabalhista, principalmente desde a década anterior e sob inspiração dos movimentos operários internacionais e da atuação da OIT desde sua fundação em 1919, no pós-1ª guerra, e que foi consolidada e nacionalizada por Vargas através da CLT, somada com a criação de uma Justiça do Trabalho para mediar os conflitos e de um Ministério do Trabalho para ter alguma fiscalização da legislação, tudo para permitir que uma base proletária pudesse se formar enquanto pilar de um tardio processo nacional de industrialização; de outro lado, a história também demonstra as dificuldades desse ínfimo progresso nas relações de trabalho e sociais, ainda sob pressão de raízes coloniais e escravagistas, mentalidade intrínseca à “casa grande” e que muito explica os retrocessos nas décadas posteriores, com mais intensidade durante regime militar decorrente do golpe de 64 e, recentemente, pelo regime ultraliberal decorrente do golpe parlamentar de 2016.

Não foi à toa que nossa República ficou ainda mais distante de um sentido de Nação desde o Golpe empresarial-militar de 1964, fundamental para conter o avanço social da classe trabalhadora e, neste sentido, bem se utilizando de uma tal “ameaça comunista” que jamais rondou por aqui. Deu certo, lamentavelmente. Nas décadas de 60 e seguintes, aquela legislação da CLT de 30 anos atrás, sofreu, até então, suas piores perdas com alterações lhe retiraram muitas das bases civilizatórias, afastando vínculo de emprego e direitos pelos temporários, pela terceirização, assim como extinguindo a estabilidade decenal pelo FGTS, dentre outros tantos retrocessos.

A redemocratização através da constituinte de 1987 foi um forte movimento que culminou com a CF/88 e parecia ser a libertação dos brasileiros e das brasileiras no caminho de uma essencial República e de um sistema democrático capaz de combater as graves desigualdades e injustiças sociais. Mas nossa CF/88, desde então, vive resistindo – são 32 anos de ataques ao pacto social de 1988 e que sequer respeita a mera literalidade de seu texto quando o assunto são direitos e garantidas fundamentais sociais.

Esse fio de esperança para se ter um mínimo projeto nacional de República ficou ainda mais distante nos últimos 3 anos, com um ataque jamais visto nos direitos sociais, principalmente trabalhistas e previdenciários, assim como nas políticas públicas necessárias para fomentar alguma dignidade à classe trabalhadoras e combater a fome e a miséria para os mais necessitados.

Desde a implementação do tal projeto “ponte para o futuro” do  ex-presidente Temer, acentuado pelo ultraliberalismo de Guedes-Bolsonaro, tudo o que se vê é a barbárie conveniente, a miséria estrutural, o aumento da “livre” exploração da classe trabalhadora pelo retrocesso das bases sociais e da legislação por sua sustentabilidade, e recua em décadas, talvez um retrocesso de mais de um século quando se percebe que as lutas pela jornada de trabalho limitadas a 8 horas diárias surgiram desde o final século XIX e início do século XX, tanto que duas lutas-símbolo dessa bandeira – e nos EUA – foram inspirações determinantes para o dia internacional da mulher (8 de março / 1911) e do dia do trabalhador (1º de maio / 1886), não pelas vitórias em si, mas pelas tragédias marcantes dessa luta.

Nesses tempos atuais em que o vínculo de emprego é marginalizado desavergonhadamente, em que as regras centenárias de direitos trabalhistas são vilipendiadas sob o holofote dos telejornais em horário nobre, e em que a miséria é usada para o maior lucro e sem qualquer pudor, a humanidade é sequestrada, a civilização é sabotada, o país se submete de joelhos aos “donos” de sempre.

Que, nesse dia 15 de novembro, os brasileiros e as brasileiras, ainda mais diante das urnas e do apelo indissociável ao voto consciente e representativo de cada qual, possam se inspirar nos ares que definem uma verdadeira República, assim como nas bases que constituem uma Nação real, e se permitam dar passos no sentido do progresso social, da dignidade e do trabalho decente, e do interesse coletivo enquanto sociedade, povo brasileiro.

Que nossa Advocacia, nesse desafio por uma República mais efetiva, possa exercer seu nobre ofício com ainda mais coragem, em cumprimento ao juramento essencial por nossa Nação, possa exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”4

Viva a República e na busca pela queda moral da nossa Bastilha5.

ERAZÊ SUTTI – advogado, docente integrante da Escola da ABRAT, pesquisador integrante do GPTC-USP (“Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital” da FD.USP) e do NTADT-USP (“Núcleo de Pesquisa e Extensão Trabalho Além do Direito do Trabalho” da FD.USP).

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1Nação – cujo significado vem do latim “natio”, de “natus” (nascido). Concepção de uma comunidade estável, historicamente constituída por vontade própria decorrente de um agregado de indivíduos, embasada em num território, sob uma mesma língua e com aspirações materiais e espirituais comuns.

2Patrimonialismo – em “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro, obra publicada em 1958, há rica e valiosa descrição sobre a “peculiaridade histórica brasileira”, escreve Faoro, “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Faoro afirma que o Estado no Brasil é objeto de posse, tomado pela camada dirigente como seu, bem como que a comunidade política comanda e supervisiona todos os negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios como negócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois em linhas que se demarcam gradualmente.”

31% – desde 2000, a maioria da população mais pobre do mundo vem recebendo somente 1% do aumento da riqueza global; 62% têm a mesma riqueza que os 3,6 bilhões de indivíduos mais pobres no mundo – oxfam.org.br.

4Juramento do Advogado

5Bastilha – prisão em francês. A “queda da Bastilha” foi o assalto popular à Bastilha, antiga prisão símbolo da opressão do Antigo Regime francês, dado como início da Revolução Francesa.